"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Prosopopeia



Não sei onde começou a minha história. O que é desde sempre? 


Vamos começar pelo que possas conhecer, ou pelo que possas acreditar. 


Talvez tenha nascido de uma explosão, aquela grande explosão, e esteja ainda a acompanhar a sua expansão. Mas talvez essa explosão e essa expansão só aconteçam através de mim.


Eu estava lá quando as estrelas nasceram e quando queimavam vivamente. Estou lá quando explodem, ou quando a gravidade puxa as partículas para ela própria, crescendo para se tornar algo novo. Eu estarei lá a vê-las morrer e arrefecer. Quem sabe quando voltarão a queimar de novo?


Eu fui, sou ou serei, dependendo de como e quando olhares. Não consigo deixar de ser diferente dependendo da gravidade ou entendimento da situação. Talvez não seja eu que mudo, mas sim a percepção que os outros têm de mim, apesar de nunca me conseguirem ver. Por outros, quero dizer tu.


Tu tentaste medir-me através do sol e da lua, pelo passar das estações criadas pela inclinação natural do eixo de rotação da tua casa. Tu tentaste ver-me como areia e tentaste prender-me numa ampulheta, or como ponteiros num relógio, ou séries de zeros e uns. Tu usaste números e equações, na tentativa de me restringires a uma definição, de explicares a minha existência. Tu tentaste controlar-me e, de certa forma, sou eu quem mede e controla a tua vida, fazendo nada mais do que existir.


Posso ser gerido, de acordo com os teus próprios termos, mas nunca ninguém será capaz de me tocar e de me agarrar e de me virar, muito menos de compreender a minha existência. Alguns de vocês têm, ou tiveram, ideias belas ou tristes ou extasiantes sobre mim. Outros de vocês estiveram perto de chegar à superfície do meu ser.


No final, para ti, para vocês, não passo de relações com outras coisas.


Talvez seja um círculo interminável, mas nunca uma progressão de causa-efeito, como normalmente olhas para mim. Mas na verdade, tu não és mais do que um grão de areia num deserto sempre em expansão. 


Será que consegues viver sem mim? Será que algo consegue existir sem a minha interferência?


Sou imparável. Sou inevitável.


Não sei quando comecei. Ou talvez eu seja quando e quando seja desde e para sempre.


Link para o texto original:
“Inktober 2019 Day 23 — Ancient”  https://link.medium.com/sx2OffVen1


Ana Martins, Outubro 2019

2 comentários:

  1. - 573 dias de vida. Foi o que dissera.
    Uma gripe me levara até o hospital. Não era nada. Nada que comprometesse meus dias, mas queria sentir-me pleno. Guiado pela vontade de saber o remédio que controlaria o meu mal. Não queria saber mais que isso.
    Já há algum tempo que não são as partes preenchidas por algum conhecimento académico que me fazem sobreviver ao mundo, mas sim as partes que conscientemente preservei apagadas em total ignorância. As partes que, até então, havia entregado ao exercício da esperança ou da fé. Fodasse, queria ainda ter fé.
    - 573 dias de vida. A descoberta.
    Funcionaria bem se fosse usado para determinar a queda das folhas de uma árvore mas não a minha.
    Um exame levou a outro. Foram horas a explicar-me as deficiências de meu corpo e as probabilidades de infecções devido a meu histórico e dos meus familiares. Disse que o que era descrito anteriormente como um infinito de possibilidades no destino de um indivíduo tornara-se apenas mais um sistema mapeado por um sistema ainda mais complexo de algoritmos. Máquinas encontram padrões em tudo.
    Porque precisava dizer isso? Como pode usar as ciências para justificar a necessidade de sua fala? Um avanço alcançado por um corpo acadêmico após séculos de pesquisa. Centenas de narizes grandes e pequenos que fuderam as folhas de todos os livros existentes, uma a uma, até desvendarem o mistério.
    Como pudera falar em nome de todos? Os que nunca ouviram meu nome, os que jamais conheceram o tom da minha voz e que ainda assim ignoraram todas as minhas preocupações, cuspindo na minha parte mais consciente, o meu lado mais incerto, mais humano.
    - 573 dias de vida. Nem mais um dia.
    E saber disso acabou com meu sono.
    A mim foi tomado a alegria infantil de somar os dias até as próximas velas.
    A contagem dos dias passou a ser regressiva. As razões para sonhar acabaram. Cada momento dedicado a pensar sobre o instante último. E de que adianta?
    Malditas as máquinas que transformam ininterruptamente todo e qualquer comportamento humano em dados. Maldita a tecnologia que nos tirou a poesia, que nos reduziu a ratos a girarem a volta dos “likes” gerados como estimulação na manutenção de um comportamento esperado pela própria máquina.
    - 573 o que?
    Sou um moribundo. Respiro medo. Não suporto.
    Mentira! Pulsa agora em mim uma voz maldita, vinda dum ego incontrolável do nosso tempo. Uma labareda que me queima por dentro. Fumaça, cegueira e dor.
    Não há salvação sem dúvida.
    Para onde isso tudo foi? Para serve esse corpo a decompor?
    - 572. 571.
    O demónio a sorrir.
    Um estudo minucioso dedicado a fuder toda dúvida. Limitar toda esperança. Parâmetros para a organização espacial dos sonhos. Inibir. Inibir.
    É exactamente isso. Não me interessa ter certeza do fim. A certeza me sepulta.
    Maldito deus das ciências, maldito gosto podre dessa maça que já fora empurrada goela a baixo.
    Nossa presunção ao tentar controlar o acaso. Somos todos desinteressantes.
    - 532.
    Estou a falar contigo que controla a vida.
    Tua presença agora é veneno a pingar sob a minha cabeça a cada segundo. Prefiro a beleza do incerto.
    Que surpresa teria eu ao inesperado de tuas acções! Teria novamente alguma relevância.
    Eu não suporto meus dias. A paz e a força de agir se foram. Permaneço saudade. Não consigo matar a lembrança dos dias incertos.
    Pus-me a contar lembranças. Pus-me a inventar algumas. Foi bom.
    - Dias, horas, segundos. Minha mente está no último.
    Quero novamente o acaso das árvores, que crescem cambaleando ao balanço dos ventos.
    Quero o dia errado. O dia em que não esperam meu fim. O dia não diagnosticado.
    Espero por ele. A salvação dos dias que não foram dedicados a mim.
    Traz logo a noite. És meu feitiço, minha praga. Se afaste.
    Cale os profetas e suas versões. Torna-me pequenino e frágil ramo. Quero a fragilidade.
    Afaste-se de mim. Fica com meu choro. Fica com meu corpo, mas devolva meu direito à surpresa.
    Deixe-me morrer no incerto. Liberta-me de ti.

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  2. Só Eu sei como começou a tua história.
    Só eu sou desde sempre. Foste criado e, como tudo, terás um fim.
    Dei-te aos homens, e dei-lhes também o espaço.
    Dei-lhes as estações do ano e um coração desejoso.
    Ao contrário de ti, dei-Me a conhecer, e
    Dei-Me a Mim, por fim.
    Agora aguardo – também eu, em ti.
    Fiz-te medida e fiz-te paciência.
    Mas nem tu, nem a ciência, me esgotam.
    Fiz-me estrada, mas permaneço Mistério.

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