8:30h
Todos os dias me sabem um pouco ao mesmo, a bibliotecária chega, alimenta-me e fica cinco
minutos a tentar que repita a frase “Bom dia estudantes!”, frase que só repito se ela colocar mais
sementes de girassol na minha tacinha. Normalmente eu não repito a frase e ela volta a sentar o
seu volumoso rabo na cadeira. Ela decidiu chamar-me de Fluffy, em homenagem às minhas
penas, é incrível a forma como os seres humanos não me dão valor, não é nome que se dê nem
sequer a uma personagem de contos infantis.
10:00h
Gosto de passar o dia a ver quem passa pela biblioteca, desde os professores doutores, que
todos os dias requisitam livros de variadíssimos temas, até aos alunos que desesperadamente
procuram os manuais com as respostas já escritas, ou até mesmo aqueles casais de namorados
que se esgueiram para as casas de banho do corredor da ala este.
A biblioteca transborda em palavras, mas vive em silêncio como se o conhecimento tivesse de
viver dentro de uma gruta.
12:00h
Adoro ser o único que pode fazer barulho na época dos exames, especialmente quando saboreio
as minhas sementes e ouço os estalos do meu bico a ecoar por toda a sala. Existem umas
raparigas no fundo junto às janelas, lembro-me delas bem pequenas a lerem o principezinho,
agora vejo-as ali a reclamar do facto de eu ser barulhento. Quem me dera que elas voltassem a
mimar-me como antes, eram tão mais simpáticas.
14:00h
Odeio estar aqui a esta hora, começo a roer as raízes das minhas penas, o cheiro a frango da
cantina polui a biblioteca, e o barulho dos pratos e talheres mexe com o meu sistema nervoso,
fico a contar quantos livros é que a bibliotecária etiquetou, que raramente são mais do que 15 ou
20.
16:00h
Todas as semanas existe um livro que é selecionado e fica aqui exposto na entrada chamado de
“Recomendação de leitura do Fluffy”, são raras a vezes em que não consigo ler o livro todo, e só
para não deixar margem para duvidas, não sou eu quem recomenda os livros, jamais
recomendaria esses romances melosos nos Nicolas Sparks ou aqueles horrendos diários de
mulheres de políticos. Mereço o nome de Aristóteles porque li toda a sua obra, e ao ler o que ele
escreve, o seu pensamento é reproduzido na minha mente, no ato da leitura, sou Aristóteles.
18:00h
Sou um pouco perverso, especialmente ao fim do dia, porque montes de vezes olho para as
janelas e vejo os pequenos pardais a embaterem nos vidros e rio-me das caras deles enquanto
se afastam atordoados. Sonho num dia poder ler mais do que só os livros que aqui deixam, sonho
puder ser eu a escolher o que leio.
20:00h
A bibliotecária já saiu, ela troca de turno com o senhor Jorge. Ele é daquele tipo de pessoas que
fala com os animais como se eles o entendessem, algo que acho só descabido, porque se ele
falar com o hamster do departamento de artes da mesma forma como fala comigo, está muito
enganado. Aquele hamster é claramente surdo, mas teve mais sorte do que eu, chamaram-no de
Tchekov, se soubessem que era surdo não o batizavam com esse nome, mas sim com o nome
de Beethoven.
21:00h
O senhor Jorge deixa-me sempre comer os restos da maça dele, odeio quando são daquelas
farinhentas, fico agoniado o resto da noite, mas sei que ele faz isso por carinho, até repito a frase
que ele gosta “Obrigado Jorge!”
22:00h
Finalmente os alunos do pós-laboral já saíram, eles são simpáticos, falam maioritariamente mal
dos patrões e dos impostos que pagam. Ainda acho graça a eles me chamarem de velhote, posso
estar com poucas penas e cada vez mais fraquinho, mas isso não faz de mim um velhote.
23:00h
O senhor Jorge saiu à pouco, hoje pareceu-me mais cansado do que o habitual, ele nem sequer
fez a vistoria noturna, arrumou as coisas dele e deu-me uma festinha antes de sair. Está sempre
escuro breu a esta hora.
24:00h
Tenho muita pena de não puder ter escrito mais na minha vida, só estás a ler isto porque
deixaram o computador que está ao lado da impressora ligado. O meu único texto vai ter imensas
cópias, se calhar até vai parar às recomendações da semana, mas vou garantir que vai
devidamente assinado, até vou passar as minhas patas pelo scâner para garantir que fui eu que
escrevi.
01:00h
Acho que cheguei ao meu terceiro ato, ao momento em que a paz chegou até mim. Quando eu vi
que o computador tinha ficado ligado não resisti em tentar chegar a ele, mas infelizmente cortei a
minha pata direita. Está a sangrar imenso, e sei que com a minha idade não vai haver volta a dar.
Vou voar até ao local onde a obra do meu homónimo esta guardada, e lá vou deixar que o meu
corpo se desligue. Espero que amanhã me enterrem com a dignidade que mereço, não quero
missas nem rituais, quero apenas ser enterrado num canteiro de margaridas. Não preciso de
lapide a identificar quem eu fui, basta cuidarem das margaridas como cuidaram de mim.
Do vosso mimético
Aristóteles
Fábio Pintor | Ficção Breve | 2019
"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
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