"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

O tronco, a flor, até à queda do fruto

Ele não entende que na vida temos mais perguntas do que respostas,quer dizer, pelo
menos é o que eu acho...Agora já não tenho a certeza.
Tudo começou quando as primeiras palavras saíram da boca dele. Eu tive sorte! Ele olhou
para mim e disse “Papá”, com a minha idade ele bem que podia ter me chamado de avô.
Fui criticado por ser um pai velhote, mas nem tudo são más notícias, ele passou por uma
fase adorável, onde todo o mundo era identificado por duas sílabas, cheio de “Pópós”,
“Pipis” e “MéMés”... Mas depois disso só piorou, a minha sanidade mental começou a ser
posta em causa, alguém teve a triste ideia de ensinar à criatura que existia um bicho Papão,
que se escondia debaixo da cama dele, e que a qualquer momento poderia sair. Dei por
mim a espreitar por baixo da minha própria cama, e a dizer à mulher que procurava as
pilhas do comando da TV. Acho que consegui disfarçar bem nas primeiras noites mas a
minha mulher acabou por descobrir do que se tratava.
Pode parecer interessante para muitos, a ideia de que aquele pequeno ser humano estava
a influenciar a forma como eu penso, mas para mim era algo extremamente difícil de
lidar...Se calhar não era tão difícil como mudar as fraldas, era horrível o cheiro, parecia que
todos os dias tinha uma estação de tratamento de esgotos em casa. eu fazia de tudo para
não estar em casa nesses momentos.
A única coisa pior que a estação de esgotos foi quando os “porquês” entraram na cabeça
dele. Eu simplesmente já não sabia o que fazer, era um ciclo vicioso, que escalava
exponencialmente a cada pergunta que ele me fazia...
Estávamos a passear pelo jardim aqui pertinho de casa, e por cima dos canteiros cheios de
flores estavam abelhas, ele adorava o zumbir que elas faziam e ficava encantado a
observar a forma como elas retiram o pólen.
-Pai, porque é que as abelhas existem?
Eu respondi rapidamente -Para fazerem o mel...
-E o Mel? Porque é que existe o Mel?
-Para nós comermos, é muito docinho!
-Pai, e porque é que comemos?
-Para sobrevivermos filho, se não comeres não consegues viver!
-Mas Pai, porque é que sobrevivemos?

E foi aí que o pequeno diabo me entalou...Eu nunca gostei de teorias existenciais,mas não
podia dar uma resposta qualquer à minha cria, da última vez que o fiz, sofri imenso,
disse-lhe que as moscas que estavam mortas no parapeito da janela tinham ido para o
mesmo sítio que o falecido jarbas (o coelho de estimação), para o céu. Até ao infeliz dia que
ele me viu a matar uma mosca, passou um mês a chamar-me de assassino.
Portanto, eu estava entre a espada e a parede, mas a questão permanecia. Porque é que
Sobrevivemos?
Uma luz acendeu-se dentro dentro de mim, e decidi utilizar psicologia inversa, olhei para ele
e perguntei. Porque é que achas que sobrevivemos filho?
Por momentos senti-me feliz, ao ver que pela primeira vez o pequeno sabichão estava com
um dilema existencial.
Ele não me soube responder, mas a questão permanecia na minha cabeça, provavelmente
naquele momento eu sobrevivia para cuidar dele, para o fazer crescer, todos os dias uma
nova descoberta.
Ele agora fala mais, mais do que devia até, visita a minha carteira como uma caixa
multibanco, e o pior é que cada vez retira mais dinheiro da conta.
Será que eu fui assim? Consegues me dizer isso? Quando saíste da minha vida eu ainda te
perguntava muitos “porquês”? Ou eu não falava sequer?
Francamente preciso das respostas que a mãe nunca me deu, talvez por desgosto, ou
talvez por viver para mim. Podes me dizer o porquê de teres feito o que fizeste? Ou fizeste
isso por mim?

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