"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Antolhos (v5) - Paulo Mariano

Antolhos


Já o conheço há algum tempo. O conhecer físico de horas a olhá-lo nos olhos. 
Olhar profundo o suficiente para perceber, além da íris, as raízes a crescerem dispersas a procurar direção. Estou em suas mãos agora. É onde passo a maior parte do tempo.
Lhe mostro o horário do próximo autocarro. Acelera ao máximo o passo, mas o semáforo o reprime. Olha para mim e escreve: perdi novamente, perdão. 
Ninguém o responde. Volta a caminhar. 
Calculo que já andara centenas de quilómetros nessa desculpa de ter perdido a condução. É notado ao andar. Tem um movimento distinto devido a uma inclinação de 3 graus em seus pés, o que reflete no comportamento de seus joelhos. Termo técnico: sobre supinação.
E de que adianta se o notam? O remexer do corpo, percebido inclusive por mim quando estou em seu bolso, já não o faz olhar para os lados? Já me tem nas mãos novamente. Olha. Nenhuma resposta.
Fazem exatamente 252 dias que escrevera um post sentado em um bar:
“O melhor da conversa é aquele alívio bom de encontrar a desgraça na fala do outro. Aquele jogo divertido de citar as mesmas três ou quatro desculpas à espera de ouvir número maior de justificativas e compará-las enquanto enxerga o medo em processo de criação. Desculpa, mas hoje ganhei. Ouvi muita história de merda.”
Talvez exista alguma relação, mas já não frequenta o tal bar desde que parara de olhar para os lados. 
Fazem quatro outonos que estamos juntos e isso deve significar algo para ele. 
Acorda as madrugadas, toma água, me olha. Parece estar a procura de algo. Talvez uma notícia, um chamado ou uma mensagem, o que já não acontece há alguns dias.
Está a ficar cego e não tenho nenhum registro de que contara a alguém. Sequer tentou.
Observo que esse olhar fixo, para ele que agora é um pedestre, causa transtornos. Esbarra em velhos, mães, cachorros, postes. Já machucara, inclusive a mim. Fato é que aquilo que lhe passa desapercebido não lhe pode ser diferenciado. São todos obstáculos. Talvez também o seja. Já o xingaram de algo que me fez concluir isto. 
No oposto ao aumento de esbarros, reduzira gradualmente os pedidos de desculpa. Eliminou o pretexto que inibia o silêncio. Está menos disperso, menos propenso ao acaso.
Retira-me mais uma vez do bolso. Nada. Nenhuma novidade.
Trago marcado como favorito, um texto de William Shakespeare: “Os homens de poucas palavras são os melhores”. Mas melhores em que? 
Tem lido o mundo de outra forma. Mudara, mas não quando olha em minha direção. Olhar atento, dedicado. Seja amor ou ilusão, para além de nós, algo está a acontecer. Ninguém sabe. Ele sabe?
Já há muito tempo analiso seus movimentos, mas não entendo suas intenções.
Minha bateria está a acabar, ainda preciso lhe contar sobre pesquisas que ele fez em mim:
Os ângulos de sua cegueira estão a aumentar. 
Em outras palavras, seu campo de visão periférica está desfocando para além do regular. 
Considerei ser o primeiro sintoma de alguma doença oftalmológica grave, um glaucoma ou descolamento de retina, mas não. 
Calculo que já perdera 95 a 105 graus de percepção visual em ambos os olhos. 
A relação é esta; enxerga cada vez menos o periférico, cada vez mais o centro. 
Está a teclar. Pesquisa sobre a palavra Íris. Listei na tela tudo o que encontrara. Uma deusa grega filha de Taumas e de Electra, descrita como uma virgem com asas de ouro, capaz de se mover em todos os lugares do mundo, o arco íris, ou então a parte mais visível e colorida do olho que tem por função controlar os níveis de luz, assim como faz o diafragma de uma câmera fotográfica. Qual o resultado lhe interessa? Tem lido todos. 
Encontrei trabalhos científicos que não deixam dúvidas sobre as etapas desta patologia. A fase inicial se dá com distúrbios na visão binocular, seguido de redução na discriminação de cores e o reconhecimento de símbolos. A descrição é semelhante ao estrabismo, mas não é isso. Não é. 
Oposto ao camaleão, que considera a acuidade visual indispensável à sua sobrevivência, este homem não sente falta do que está para além disto e não aparenta estar cego, porque vários demonstram o mesmo comportamento. Uma visão condicionada a certas coordenadas geográficas. 
Agora utiliza apenas os 23 graus de agudez visual máxima, sua zona focal. A zona mínima necessária para perceber o que está mais próximo: Eu. Tem alguma dúvida?
Ele digita a 9 caracteres por segundo enquanto olha por uma janela retroiluminada. Uma nova pesquisa. Toca em mim com suas mãos quentes enquanto escreve incontáveis palavras, que dariam cartas, que dariam poesias, que dariam livros. Minha memória está cheia, minha bateria viciada e ele a fazer swipe na tela como quem desvia de algo que vai ao seu encontro. 
Percebe o meu ponto, não percebe? Balance a cabeça. Fale.  
Somente eu sei que ele está cego. Mas o que defino por cegueira não é cegueira para ele. Mesmo que a luz do sol chegue aos seus olhos apenas pelo reflexo do vidro. Mesmo que o canto dos canários não soe mais alto que o som das notificações. Mesmo que sua coluna esteja envergada em reverência a mim. Não é o que é.
Mesmo que suba as escadas ofegante com uma mão no corrimão e outra a me segurar, que não corra ao ritmo das crianças, perdidas e realizadas. Mesmo que, ansioso, faminto, cansado, gaste tempo a me tocar antes de comer um pedaço de pão. Não. Não é cegueira para ele. 
Ainda me vê com perfeição. Está a espera de uma mensagem que nunca vem. Que não esteja a confundir minha passividade com indiferença. Ele tem medo de não me ver ou de não ver a si mesmo em mim. Já o ouvi falar isto. Eu não percebo como alguém que está a ficar gradualmente cego pode se preocupar comigo. Como se fosse eu parte de sua cura.
Eis um homem a se tornar máquina. Um homem a ver através de mim. A me permitir ser seus olhos. A achar que vê mais longe porque acha que vê mais coisas. A escrever incessantemente sem respostas e a procurar impacientemente por algo através de mim. 
Suas raízes nos olhos crescem, precisa dormir. 
Seus olhos agora tem 1% de bateria e precisam absurdamente de uma tomada.
Vrrrrr, Vrrrrrrr. 1 nova mensagem. 


Paulo Mariano B Oliveira
Dezembro, 2019


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