Prosopopeia (1.ª tentativa)
Já não me lembro como é que viemos aqui parar. Sei que não viemos pelo nosso pé. Ainda assim, quando cá chegámos o futuro prometia. Éramos novos, estávamos em forma e, sobretudo, tínhamo-nos um ao outro.
Normalmente íamos sempre para o mesmo canto, mas ainda assim, dentro do panorama dos restantes dávamos um bocado nas vistas. Por isso, era a nós que nos escolhiam com mais frequência.
Tentámos desde o princípio dar-nos bem com todos, mas nem sempre foi fácil. Quando chegámos percebemos que havia uma transparência entre todos que invejávamos, mas que a mim não me era nada natural. Nesse aspecto ela sentia-se mais em casa, estava mais habituada a este à vontade do que eu, que sempre fui mais opaco. Ainda assim, era uma convivência muito arrumada, cada um sabia o seu lugar, e ninguém se chateava.
Sempre que nos escolhiam a nós ficávamos entusiasmados, porque nos levavam sempre para sítios diferentes. Além disso, éramos muito bem tratados e normalmente escolhidos para os dias de festa. Assim, apesar de cansados, voltávamos sempre contentes e de cara lavada.
Mas a meia idade chega para todos e, às tantas começámos a ficar mais moles. Por isso, se no início nos faziam galgar quilómetros até ao trabalho, agora já não arriscavam tanto connosco e já não íamos muito longe.
Por esta altura, começámos também a perceber que nos calhava mais roupa velha. Ao princípio não nos importámos, até porque eram sempre coisas boas. Mas o desgaste também se começou a notar em nós. Sobretudo nela, que andava mais irritadiça e irrequieta. Começámos a discutir e notava-se: já não voltávamos tão unidos como dantes.
Depois de um dia particularmente difícil, foi a gota de água: saltou-me a tampa. Como é transparente, não consegui perceber para onde foi – e os nossos donos também não. Nunca mais pegaram em mim.
Se fosse de vidro como os outros ainda me poderiam reutilizar como pirex, mas a um tupperware sem tampa já pouca esperança lhe resta. Ainda por cima sou de plástico, portanto não tenho ilusões de algum dia vir a ser reciclado.
Inês Avelar, Outubro 2019.
Lembro-me perfeitamente do dia em que fui descartado. Simplesmente me seguraram pela ponta, com nojo, e se desfizeram de mim. Eu ainda mantinha certa esperança de que haveria compaixão, afinal, foram anos de dedicação, mas não, jogaram-me dentro de uma lixeira, na calçada de uma rua sem nome. “Aqui jaz um pote”. Era um triste fim. Fui deixado ali. Não me levaram ao orgânico, nem ao papel, muito menos ao contêiner de vidro. Fui ficando, desgastando, mofando a cada dia. Eu não prestava para mais nada.
ResponderEliminarUm dia acordei com uma baforada fedorenta. Eu estava tão triste que sequer tive forças para reclamar. Fui lambuzado por aquela língua melequenta e cheia de baba. O rabo dele abanava e ele latia com força para seu dono que vivia a poucas quadras dali, debaixo de um viaduto não muito movimentado. Seu dono me encontrou e sem pestanejar me recolheu.
Fiquei tão contente e comovido, mas senti pena por ter sido separado da tampa. Ela teria sido feliz ao meu lado no novo lar.