O
destino de cada
Taïs Reganelli
- Tem alguém aí? Ei!
Ouviu um burburinho,
cochichos, mas ninguém respondeu. Em seguida, a porta foi trancada. Esperou
muitas horas ali, estagnada, pensando no seu passado, naquilo que já tinha
visto, mas não havia visto muito. Tinha apenas uma lembrança muito remota.
O tempo corria e ela,
solitária, só percebia os dias passarem por causa do calor e da luz do sol que
iam e vinham. Teias de aranha, poeira e a própria solidão começaram a se
instalar e a incomodá-la.
Sou uma cadeira mal-amada,
concluiu, derrotada. Não era velha, não estava quebrada e mal tinha começado
sua vidinha proletária. Não entendia a razão.
Um dia, não sabia dizer
quanto tempo depois, ouviu passos. Arregalou os olhos, ficou eufórica. Desta
vez não chamou por ninguém; preferiu observar a situação. Ouviu a porta
rangendo e descobriu que estava de costas para ela. A vida é mesmo muito
injusta: finalmente tinha a chance de ver o que acontecia ao seu redor, mas não
pôde se mexer, claro, era imóvel. Era um móvel. A língua também tem suas
ironias...
Quisera ao menos ter tido
a sorte de nascer balanço, ou uma dessas cadeiras de escritório, cheias de
parafernália, rodinhas e o diabo-a-quatro.
Mas não demorou e num vapt saiu voando pelas mãos de alguém.
Ela não tardou a reclamar: - ai, me põe de volta no chão! Mas enquanto o seu
destino não chegou, ninguém a soltou. Os
passos foram ficando mais lentos, ouviu uma conversa sobre onde ela deveria
ficar e pronto, lá estava. Aquele seria o seu lugar. Antes disso, era apenas um
não-lugar, um depósito, um almoxarifado de espera, um abandono premeditado e
planejado.
Mal se instalou e já ouviu
o “conversê” geral. Todas as suas colegas estavam eufóricas, conhecendo umas às
outras, tentando descobrir qual era este novo lar. Já ela era tímida, preferiu
ficar calada. Não era difícil perceber; havia um quadro negro, carteiras de
estudantes, ou seja, ela e suas colegas já tinham um novo propósito de vida:
acolher bundas de jovens estudantes, ou, para alguns, acolher rabos.
Pois bem, até aí não há
novidade alguma, as cadeiras são feitas mesmo para isto: abrigar bundas. Toda
cadeira acolhe bundas, mas há sempre uma apreensão em saber que tipo de bunda
lá vai estar.
Nesta noite não conseguiu
dormir, ficou muito ansiosa. Logo cedo, na manhã seguinte, ouviu o sinal e
crianças entraram correndo na sala, cada qual escolhendo seus lugares. Ela
queria mesmo era fazer amizade com a sua bunda. Triste seria abrigar nádegas
duras, sem alegria de viver. Sentou nela um garoto de uns quinze anos e ela
logo se afeiçoou a ele. Ele lhe fez companhia dia após dia e ela gostou
particularmente de quando chegou o inverno, quando ele usava calças quentinhas
que lhe aqueciam também. Havia dias de pura peraltice, os dias que precediam um
jantar de sopa de feijão ou brócolis. Ela ria-se toda da fedentina que lhe
invadia as madeiras. Dias ruins eram aqueles em que o moleque faltava à escola.
Não acontecia com frequência, mas se sentia tão só…
Não se queixou, mas logo
no primeiro dia sentiu uma beliscada forte. O miúdo tinha sempre agarrada ao
bolso de trás direito uma chave muito pontiaguda. A chave da sua casa. Com o
passar do tempo, foi se acostumando àquela dor. Era uma dor de amor, não era um
grande problema.
Era um amor unilateral,
claro, mas era bom, era amor.
A cada dia que passava, a
chave passou a ferir cada vez mais a cadeira. Ela tentava alertá-lo, mas ele
não entendia. Ela sofria e ele continuava a sua vida escolar sem dar
importância àquilo que o mantinha sentado por horas e horas todos os dias.
O corte foi ficando
profundo, o que alimentou a imaginação do adolescente. Já havia algum tempo,
ele andava mal-educado, ingrato. Colava chicletes nela, riscava a tábua… Vendo
a fenda que a chave tinha causado no tampo da cadeira, teve uma brilhante
ideia. Pegou seu canivete, escondido, e começou a cortar deliberadamente toda
superfície lisa encontrada. A cadeira foi tomada de uma profunda tristeza, não
podia imaginar que justo ele, seu companheiro, lhe faria tanto mal.
Já extremamente deprimida
e desejando virar lenha, viu acontecer uma inspeção no material escolar e em
todo o estabelecimento de ensino, e que incluía toda a sala de aula. Era o fim
do ano letivo. Após ter sido minuciosamente analisada, foi levada, lixada,
pintada, consertada, reformada... A sua estrutura, que estava sendo decomposta,
eram sua memória e personalidade, por isso, foi esquecendo a própria história. Esquecendo…
esquecendo… Uma lixada, uma memória a menos, uma demão de tinta, uma história
esquecida. Adormeceu.
Ouviu uns gritos abafados,
estava zonza e confusa. Sentiu um solavanco. Alguns minutos depois, ouviu
qualquer ordem dada, viu uma claridade e logo apagaram a luz.
- Tem alguém aí?
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