"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O Destino de Cada (Prosopopeia)


O destino de cada
      Taïs Reganelli
- Tem alguém aí? Ei!
Ouviu um burburinho, cochichos, mas ninguém respondeu. Em seguida, a porta foi trancada. Esperou muitas horas ali, estagnada, pensando no seu passado, naquilo que já tinha visto, mas não havia visto muito. Tinha apenas uma lembrança muito remota.
O tempo corria e ela, solitária, só percebia os dias passarem por causa do calor e da luz do sol que iam e vinham. Teias de aranha, poeira e a própria solidão começaram a se instalar e a incomodá-la.
Sou uma cadeira mal-amada, concluiu, derrotada. Não era velha, não estava quebrada e mal tinha começado sua vidinha proletária. Não entendia a razão.
Um dia, não sabia dizer quanto tempo depois, ouviu passos. Arregalou os olhos, ficou eufórica. Desta vez não chamou por ninguém; preferiu observar a situação. Ouviu a porta rangendo e descobriu que estava de costas para ela. A vida é mesmo muito injusta: finalmente tinha a chance de ver o que acontecia ao seu redor, mas não pôde se mexer, claro, era imóvel. Era um móvel. A língua também tem suas ironias...
Quisera ao menos ter tido a sorte de nascer balanço, ou uma dessas cadeiras de escritório, cheias de parafernália, rodinhas e o diabo-a-quatro. 
Mas não demorou e num vapt saiu voando pelas mãos de alguém. Ela não tardou a reclamar: - ai, me põe de volta no chão! Mas enquanto o seu destino não chegou, ninguém a soltou.  Os passos foram ficando mais lentos, ouviu uma conversa sobre onde ela deveria ficar e pronto, lá estava. Aquele seria o seu lugar. Antes disso, era apenas um não-lugar, um depósito, um almoxarifado de espera, um abandono premeditado e planejado.
Mal se instalou e já ouviu o “conversê” geral. Todas as suas colegas estavam eufóricas, conhecendo umas às outras, tentando descobrir qual era este novo lar. Já ela era tímida, preferiu ficar calada. Não era difícil perceber; havia um quadro negro, carteiras de estudantes, ou seja, ela e suas colegas já tinham um novo propósito de vida: acolher bundas de jovens estudantes, ou, para alguns, acolher rabos.
Pois bem, até aí não há novidade alguma, as cadeiras são feitas mesmo para isto: abrigar bundas. Toda cadeira acolhe bundas, mas há sempre uma apreensão em saber que tipo de bunda lá vai estar.
Nesta noite não conseguiu dormir, ficou muito ansiosa. Logo cedo, na manhã seguinte, ouviu o sinal e crianças entraram correndo na sala, cada qual escolhendo seus lugares. Ela queria mesmo era fazer amizade com a sua bunda. Triste seria abrigar nádegas duras, sem alegria de viver. Sentou nela um garoto de uns quinze anos e ela logo se afeiçoou a ele. Ele lhe fez companhia dia após dia e ela gostou particularmente de quando chegou o inverno, quando ele usava calças quentinhas que lhe aqueciam também. Havia dias de pura peraltice, os dias que precediam um jantar de sopa de feijão ou brócolis. Ela ria-se toda da fedentina que lhe invadia as madeiras. Dias ruins eram aqueles em que o moleque faltava à escola. Não acontecia com frequência, mas se sentia tão só…
Não se queixou, mas logo no primeiro dia sentiu uma beliscada forte. O miúdo tinha sempre agarrada ao bolso de trás direito uma chave muito pontiaguda. A chave da sua casa. Com o passar do tempo, foi se acostumando àquela dor. Era uma dor de amor, não era um grande problema.
Era um amor unilateral, claro, mas era bom, era amor.
A cada dia que passava, a chave passou a ferir cada vez mais a cadeira. Ela tentava alertá-lo, mas ele não entendia. Ela sofria e ele continuava a sua vida escolar sem dar importância àquilo que o mantinha sentado por horas e horas todos os dias.
O corte foi ficando profundo, o que alimentou a imaginação do adolescente. Já havia algum tempo, ele andava mal-educado, ingrato. Colava chicletes nela, riscava a tábua… Vendo a fenda que a chave tinha causado no tampo da cadeira, teve uma brilhante ideia. Pegou seu canivete, escondido, e começou a cortar deliberadamente toda superfície lisa encontrada. A cadeira foi tomada de uma profunda tristeza, não podia imaginar que justo ele, seu companheiro, lhe faria tanto mal.
Já extremamente deprimida e desejando virar lenha, viu acontecer uma inspeção no material escolar e em todo o estabelecimento de ensino, e que incluía toda a sala de aula. Era o fim do ano letivo. Após ter sido minuciosamente analisada, foi levada, lixada, pintada, consertada, reformada... A sua estrutura, que estava sendo decomposta, eram sua memória e personalidade, por isso, foi esquecendo a própria história. Esquecendo… esquecendo… Uma lixada, uma memória a menos, uma demão de tinta, uma história esquecida. Adormeceu.
Ouviu uns gritos abafados, estava zonza e confusa. Sentiu um solavanco. Alguns minutos depois, ouviu qualquer ordem dada, viu uma claridade e logo apagaram a luz.
- Tem alguém aí?

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