"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Propósito




Propósito

Fomos apanhados de surpresa junto ao lago, no local onde costumávamos passar férias. O vento soprava e abanava a pequena casa de madeira onde nos refugiávamos. Depois de eu medir a temperatura e calcular os riscos de ir lá fora, decidimos que sair iria colocar em perigo tudo aquilo que não ousávamos perder.

Demos o nosso melhor para isolar todas as frestas, todas as portas e janelas por onde pudesse entrar o ar gelado. Fomos mesuradamente queimando lenha para nos mantermos aquecidos, até que a única madeira existente era a que nos resguardava do temporal. Não havia muito mais a fazer para combater o frio

- Deixa-me cá fechar os olhos. - disse o velho, na semana anterior. - Só por um bocadinho.

Mesmo após os meus esforços incontáveis para o impedir de o fazer, ele foi o primeiro a morrer. Foi quando tive a certeza que não havia nada a fazer. Nunca existira esperança. Posteriormente, todos os outros deixaram-se levar, um por um.

Naquele dia, após o adolescente, por quem desenvolvi um carinho especial, sucumbir ao calor do sono, a tempestade cessou. Estava sozinho.

«É isto? Acaba tudo assim?» Pensei.

Depois de lubrificar as minhas articulações, abri a porta com o meu braço mecânico e deixei entrar uma fria rajada de vento. Já não tinha importância. O meu coração de lata nada sentia. Comecei a andar, para longe da morte.

«Vou acabar por enferrujar, deixar de me conseguir mover. O meu corpo acabará por ser destruído. Por quanto tempo estarei consciente do que me rodeia?» Aquela ideia havia sido plantada no meu chip de memória muito antes. «No final, acabarei por deixar de existir.» Esperava.

Nada se movia para além das minhas pernas. A cadência dos meus passos não sofria qualquer alteração no ritmo. Tudo estava coberto numa fina camada de gelo. O sol pálido espalhava a sua luz fraca em tons de branco e cinza. As árvores despidas estavam congeladas. Primeiro, reparei num rato aconchegado pelo gelo. Depois, vi um passarinho, cujo movimento ficara parado no tempo. Depois um esquilo, um gato e um lobo. Quando comecei a reconhecer as expressões e os rostos azulados, entre os seres outrora vivos, quis retirar o chip de emoções, mas este não saiu. E estava sozinho.

Uma semana, nove dias, oito horas, quatro minutos e vinte e três segundos. Sei exactamente quanto tempo passou desde o momento em que saí da casa até chegar à cidade mais próxima. Conseguia consultar o meu relógio interno a qualquer momento. No entanto, a progressão da passagem do tempo, ou pelo menos a minha percepção da mesma, tinha mudado por completo. Nunca dormia, apesar de me pôr em piloto automático, durante algumas horas. Era a forma de processar e fazer backup de toda a informação que estava a recolher.

«Os meus mestres desapareceram tal como a minha finalidade.» Mantive o ritmo, enquanto analisava os edifícios que se erguiam para tocar no céu. «O que vou fazer agora? Fui criado para servir, ajudar, fazer companhia.»




A neve quebrava debaixo dos meus pés de metal. Os dias tornaram-se semanas, as semanas meses. Não restava nenhuma vida e ainda não conseguia inteirar-me com o conceito da solidão.

«Posso tentar construir algo que tenha o mesmo propósito que eu tive um dia.»

Procurei por restos de metal no meio de uma sucata antiga, ignorando o facto de que aquele acto não devolver sentido à minha existência. Bem sabia que aquele vácuo nunca seria preenchido.

Encontrei a motherboard de um computador velho. Longe de ser o último modelo, era suficientemente adequada para ser utilizada. O processador não era o melhor, mas pelo menos não necessitava de um sistema de arrefecimento, dadas as temperaturas extremas. Comecei por trabalhar no chipset seguido do armazenamento de memória.

Aquele trabalho mantinha os meus componentes a funcionar e o frio não se fazia sentir tão intensamente. Não que conseguisse experienciar essa sensação, não da forma como sentia o sobreaquecimento.

Assim que acabei de montar tudo o que era necessário para o processamento de informação, bem como os seus cálculos, testei e fiz ajustes. Enquanto isso, fui recolhendo objectos e acessórios peculiares, com os quais, mais tarde, poderia decorar o revestimento.

Construí os sensores necessários à captação de dados exteriores, bem como um sistema energético auto-sustentável. Utilizando um dos meus chips sobressalentes, programei as comandos e interacções básicas.

Meses se passaram, enquanto repeti este padrão vezes sem conta. Depois de infindáveis testes e reajustes, liguei-me ao novo ser para lhe passar energia. Apesar da sua forma não ser humanóide, como a minha, tinha um ar bastante engraçado.

«Está pronto, por fim.»

Assim que o liguei, milhares de pequenas luzes acenderam-se no visor destinado a ser a sua cara, a sua forma de mostrar reacções. Um sorriso formou-se e uma voz computadorizada cumprimentou-me:

- Boa tarde! Em que posso ser útil?

Estava tão surpreso, que não soube reagir. Por momentos, quase senti algo espontâneo, algo que não estava programado a sentir. Um vislumbre de felicidade passou pelos meus circuitos, em forma de electricidade. Ao olhar para a minha criação, quase senti orgulho.

- Boa tarde! Em que posso ser útil?

Aquilo em nada se parecia como a minha clara e agradável voz. Soava demasiado falsa.

«Eu sou assim? Afinal de contas, também não passo de um embuste.» Era bastante irónico. Apesar de não experienciar emoções e sentimentos por mim, a minha base de dados continha uma descrição de cada conceito, tal como os sintomas e reacções do corpo humano.

- Boa tarde! Em que posso ser útil?

A voz exasperante começava a irritar os meus receptores sonoros.

«Poderei estar a ganhar consciência própria?» Tentei livrar-me daquele pensamento. Eu não passava do produto do código que fora me fora atribuído. «Há tanta probabilidade de eu conseguir criar um ser que se consiga desenvolver por si próprio, quanto a de eu fazer o mesmo por mim.»

- Boa tarde! Em que posso ser útil?

O meu processador começava a aquecer sem razão aparente.

«Será frustração?» Um segundo depois, apercebi-me do quão ridículos soavam os meus pensamentos. «Não tenho capacidade de sentir emoções.»

- Em que posso ser útil?

- Dá-me um significado! Dá um sentido à minha patética existência!

Não estava, de todo, à espera da minha própria reacção, mas não consegui deixar de o tentar desligar. Não resultou.

- Boa tarde!

Atirei-o contra uma parede. Não foi o suficiente para o destruir. Num rasgo de insanidade, não parei de lhe dar pontapés, até não restar mais nada para além de pequenos pedaços.

Acabei por arrefecer e olhei para os destroços. Não sei se as acções foram fruto de um defeito mecânico, de um glitch no software ou de um bug no meu código.

«Não são mais que um reflexo das minhas ideias absurdas.»

Comecei por recolher os restos espalhados no chão, enquanto pensava numa forma de os melhorar. Teria de repetir todo o processo que havia demorado meses. Pelo menos, sabia que tinha de fazer uma alteração aqui e ali.

«Desta vez vou criar algo com importância.»

 Ana Martins, Outubro 2019

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