"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona
terça-feira, 8 de outubro de 2019
Exercício sobre construção e dissolução de um padrão a partir d’A escola’, de Donald Barthelme.
Durante o dia contávamos histórias. Eu achava que a maior parte era mentira. Um tipo muito magro, que quase não comia porque dois ou três tipos lhe roubavam a comida quase diariamente, disse que tinha ouvido dizer que havia ossos e partes de corpo humano espalhadas pelo jardim. Não explicou como tinha vindo a saber isto, nem ninguém lho perguntou. Que os ossos pertenciam aos jardineiros que o Diretor tinha contratado para o desenhar, muitos antes de obrigar os prisioneiros a cuidar dele. Nós ouvíamos com atenção. Os homens morrem envenenados por alguma flor ou assim?, perguntou outro homem, um que eu nunca tinha visto e que devia ter chegado à pouco tempo à prisão. O tipo magro não disse nada, nem ninguém se arriscou a dar uma resposta. Homens com medo inventam coisas para se entreter, pensei. Para justificar o seu medo e assim fugir-lhe, ou para construir um inimigo e assim justificar o seu medo. Eu não era diferente deles. Passava os dias e as noites com medo que me viessem buscar.
Os dias passavam como todos os dias em todas as prisões, e eu que o diga, que já estive em três. Mas as noites eram longuíssimas, as mais duras que alguma vez tinha vivido lá dentro. Era sempre de noite que nos vinham buscar. Três ou quatro guardas armados, às vezes mais. A princípio eu ficava acordado toda a noite, a olhar para o teto, atento a todos os minúsculos barulhos que os meus companheiros faziam. Se me viessem buscar eu não seria apanhado desprevenido. Eu julgava-me um tipo duro, claro, como todos os que estavam lá dentro. Mas ao fim de algum tempo percebemos que os guardas alternavam entre as várias alas, nunca repetiam uma duas vezes seguidas, e aprendi a relaxar.
Lembro-me de uma noite em que foram à Ala Este. Lembro-me porque levaram um tipo com quem eu tinha estado a falar durante o dia. Era um tipo duro, muito mais duro do que eu. Um tipo que eu apostava que iria sobreviver a tudo lá dentro. Durante o dia apareceu morto. Os guardas trouxeram-no do jardim por volta do meio-dia, como de costume. Já era hábito vermos os guardas a carregar um saco com um corpo de dentro do jardim. Víamos tudo através da rede de arame farpado. Por alguma razão, naquele dia, o saco do corpo estava aberto, talvez porque ele fosse demasiado grande para caber no saco. Consegui ver o seu rosto esverdeado, os seus lábios inchados, prestes a rebentar de tanto sangue.
O funeral foi logo nessa tarde, como era sempre. Nunca se esperava. Acho que o Diretor não gostava de enterrar dois tipos no mesmo dia, não era elegante. E o Diretor era um tipo que gostava de elegância, sempre bem vestido nos seus fatos muito bem passados a ferro. Como de costume, um grupo de guardas cantava músicas fúnebres, que aprendiam às quartas-feiras à tarde. Tinham um pequeno grupo, e aprendiam sobretudo música popular, daquela que dá na rádio, mas o Diretor tinha-lhes pedido que aprendessem músicas próprias para funerais. Eu acho que não tinha conseguido. Aprender músicas que poderiam vir a ser cantadas no meu próprio funeral, mais dia menos dia.
Nessa manhã devia ter havido problemas entre os prisioneiros e os guardas porque nenhum dos prisioneiros da Ala Este estava presente. Acho que nessa altura começava a haver algum desconforto com tantas mortes. A sensação, de resto partilhada entre todos os prisioneiros de todas as alas, que era tudo propositado, que não eram acidentes, como o Diretor nos fazia querer acreditar nos seus discursos.
Pelas contas de um dos prisioneiros da Ala Sul, com quem falei durante um jogo de futebol, acontecia o mesmo todos os dias há pelo menos uma centena de dias, embora nem todos os dias houvesse funerais, e nem todos os desaparecidos tivessem aparecido dentro de sacos. Ele não conseguia dizer quando tinha começado, nem porquê, até porque, como ele próprio me admitiu, tinha um problema com o álcool, mas alguma coisa não estava certa. Foi assim que ele disse, ‘alguma coisa não está certa’, mesmo para uma prisão aquilo não era normal. Eu tinha chegado há sessenta dias. Todos os dias fazia um risco na parede da minha cela com a unha do dedo indicador da mão esquerda. E também eu achava estranho que nesses sessenta dias tivesse havido tantas mortes.
No funeral, desse dia, o diretor falou mais do que de costume. O jardim é uma tentativa de paraíso, disse ele, não só contrasta com o que o rodeia, sendo belo e estando rodeado por coisas feias, como se eleva acima de tudo. Olhando para a prisão e os seus campos do Norte na altura certa do dia, continuou perante o silêncio de todos, guardas e prisioneiros, parece que se o jardim e as suas cores se elevam acima das torres largas da prisão. As suas grandes paixões eram a botânica e a geometria, disse, e tinha encontrado ali a fórmula secreta da sua felicidade, e tinha de nos agradecer a todos a nossa ajuda, a nossa compreensão, o nosso empenho. Dizia tudo isto com uma voz bonita, melodiosa, e mais bem vestido que nunca, num fato cinzento e com riscas azuis que lhe ficava impecavelmente.
Nessa noite ninguém conseguiu dormir, apesar de não ser a vez da nossa Ala, mas, segundo as nossas contas, a vez da Ala Sul. Ouvíamos com atenção todos os ruídos que nos chegavam. Se estivéssemos verdadeiramente silenciosos conseguíamos ouvir o que se passava nas outras Alas. Nesse estado de vigília acabei por adormecer, e tive um sonho do qual acordei estranhamente calmo. Um animal monstruoso, de formas nebulosas, lia de um livro uma série de histórias. Eu estava sentado aos seus pés, juntamente com animais que deviam ser a sua ninhada, pois agarravam-se ao ventre do monstro com a fome desesperada dos recém-nascidos. Com a sua voz de animal, que eu estranhamente percebia, falava-me do Quincux, que é composto usando os cantos de um quadrilateral regular e o ponto em que as suas diagonais se intersectam. O monstro explicava-me como esta estrutura está presente em todo o lado, em coisas vivas e em coisas mortas, nos animais do fundo do mar e nas vértebras dos mamíferos e nas espinhas dos pássaros e dos peixes, na pele de cobras africanas e nos corpos de larvas, borboletas e traças, mas sobretudo em plantas e flores. Plantas e flores que nasciam e cresciam no jardim, tão belas que qualquer homem que as olhasse morreria. Depois, a sua voz foi-se tornando distante, ou mais parecida com o balir de uma cabra ou com o rugido de um animal feroz, e então acordei.
Momentos após acordar os gritos começaram a ecoar por toda a Ala Norte, a nossa ala, e por todas as outras Alas. Mais um homem era arrastado da sua cela. Os seus gritos desesperados encontravam eco em todas as celas, mas nenhum prisioneiro podia impedir o que se passava. Pensei reconhecer, por entre os gritos frenéticos, o homem que tinha falado comigo nesse dia, e pensei se não estaria a chegar a minha vez.
No dia seguinte o dia decorreu lentamente, e o espírito de todos era especialmente lúgubre. Não falámos à hora de almoço nem se contaram histórias. No funeral, em vez de se enterrar um prisioneiro enterraram-se três, todos da Ala Sul. De entre eles, confirmei tristemente a presença do tipo com quem tinha falado, e pude ver com clareza o horror gravado no seu rosto. Colocaram os três corpos dentro de uma vala. Nessa altura já não devia haver sacos nem caixões. Enquanto o Diretor falava, aparentando tristeza e ressentimento perante a injustiça da vida, pensei em que segredos estariam guardados dentro daquele jardim, e se não estaríamos todos debaixo de algum feitiço, que nos impedia de ver a loucura daquela situação.
No dia seguinte, sem que tivesse havido gritos ou confusão, seis prisioneiros, todos homens jovens e acabados de chegar à prisão, todos da Ala Oeste, foram postos debaixo de terra. Depois começaram a morrer guardas. À hora do jantar os guardas que tinham ido ao jardim buscar os corpos dos prisioneiros também apareceram mortos. Fomos colocados mais cedo nas nossas celas. Ficámos sem jantar. O homem magro, que tinha contado as histórias sobre ossos e pedaços de corpos humanos, e que dormia na cela ao lado da minha, ria sem parar, não cheguei a perceber porquê.
Nessa noite, que seria a noite da minha ala, nenhum guarda nos veio buscar. No dia seguinte, um dia especialmente solarengo, enterrámos quatro homens, todos guardas.
A noite seguinte era provavelmente a nossa vez, e todos tínhamos a sensação que ninguém estava a salvo, tudo era possível. Os mais sádicos ou desesperados faziam apostas entre si para ver quem iria ser selecionado para a ida até ao jardim. Esperávamos o momento em que os guardas mais ferozes avançariam em direção às nossas celas com os bastões em punho e os dentes cerrados. Eu mantinha-me em silêncio. Confesso que estava aterrorizado. Já não me sentia um homem duro, e já não tinha a certeza que iria sobreviver. Tinha a sensação de que iria ser selecionado já nessa noite. Quando por fim os guardas se aproximaram das nossas celas, já os primeiros raios de sol deviam ter surgido no céu exterior, e eu e os meus companheiros estávamos exaustos de tanto especular, incapazes de nos debater, de resistir.
Os guardas aproximaram-se da minha cela. Chamaram o meu nome. Aproximei-me, incapaz de desobedecer. Os seus rostos estavam contraídos, os músculos dos seus pescoços ameaçam romper a pele, os seus olhares eram frenéticos e suados. Um deles agarrou-me pela camisa e puxou-me para si. O diretor não quer que ninguém conheça os caminhos do jardim, os segredos das suas bifurcações, disse-me. De cada lado do jardim, há seis árvores, disse outro, mas visto a uma certa distância, parece haver doze. Pareciam loucos. Eu esforçava-me por dizer que sim, por parecer dócil.
De quanto mais longe se olham mais clara é a visão, continuou um dos guardas, escondido na penumbra, e vê-se o menor dos detalhes com a maior claridade. No chão, começou outro guarda, com a voz pesada de um barítono, nenhuma pedra apresenta uma forma quadrada ou retangular. Ao invés, respeitam um padrão desenhado previamente, composto por pedras estreitas, primeiro, por pedras triangulares, depois, e por pedras de seis ou mais arestas, por fim.
Quase a ter um ataque, um quarto guarda disse: quando o sol incide sobre a extremidade Oeste do jardim pode contar-se exatamente vinte passos entre o seu centro, onde os corpos aparecem, e a sua extremidade. Esses vinte passos parecem trinta quando o sol brilha de Sul. Outras vezes, parece que o jardim não passa de uma imagem na extremidade do recinto, um desejo impossível de alcançar.
Uma voz dura e fria quebrou o discurso confuso dos guardas. Escolhe um prisioneiro, disse-me o chefe dos guardas, que tinha ficado silencioso até esse momento, e que parecia o único lúcido de entre eles. Escolhe um homem, precisamos que escolhas. Nesse momento fiquei paralisado. Não podia acreditar que a vida de um dos meus companheiros estava nas minhas mãos. Talvez pudesse entregar-me a mim mesmo, mas teria coragem para isso? Permaneci silencioso, baixei os olhos em direção à escuridão cinzenta do chão. Escolhe um, voltou a dizer o chefe dos guardas. Ou eu escolho por ti. A minha garganta secou. Pensei em apontar ao calhas, apontar para uma cela qualquer, pensei em apontar para mim mesmo, mas a minha mão permaneceu em baixo, sem força para se levantar. Os guardas sorriram, riram até, não sei se de sadismo se de desespero.
Perante o meu silêncio rapidamente se afastaram de mim e escolheram outra cela. Afastei-me das grades e embrulhei-me na manta. Da minha cama ouvi-os sussurrar longamente, falar com outros prisioneiros. Não sei o que disseram. Envolvi-me na minha manta e procurei esquecer tudo. Depois, começaram os gritos, um ou mais homens foram arrastados lá para fora, não sei, e tudo voltou a ficar silencioso. Não voltei a dormir, ou dormi profundamente, não sei.
A campa parecia a aura branca de um santo. O mármore tinha sido polido e lavado. De todos os lados resplandeciam flores coloridas e o verde dos seus caules era escuro e vivo, como se um rio subterrâneo alimentasse aquela pequena floresta em redor do caixão.
Nós, os prisioneiros, ficámos todos alinhados, entre o jardim e o buraco no chão, e o caixão desceu lentamente. Os guardas, que sempre ficavam a uma distância segura com as suas armas, desta vez avançaram e colocaram-se junto ao diretor, que largava as suas lágrimas habituais, e que eram parte do ritual. Nós, os prisioneiros, não sabíamos o que fazer. Eu estava contente por não ter sido a minha vez de morrer. Estava preparado para voltar para a cela, para recomeçar a lotaria de novo. Não sabia o que pensar da noite anterior, não sabia o que iria acontecer dali para a frente.
De repente, enquanto o diretor falava, um dos guardas, o capitão dos guardas que tinha falado comigo na noite anterior, pegou-lhe pelo pescoço. A voz do Diretor ficou mais fina, mais estridente. Por momentos ele continuou com o seu discurso, sobre a beleza do jardim e sobre a necessidade de fazer sacrifícios em nome da beleza. Mas depois, ao ser empurrado para a beira da campa, tentou voltar-se para trás e ordenar que o largassem, que ele era o diretor e que não era assim que as coisas se deviam desenrolar. Quando ele tentou levantar a mão para exigir obediência já era tarde, e já todos ouvíamos o barulho seco do seu corpo a embater contra o caixão no fundo do buraco. Os guardas começaram a atirar terra para dentro do buraco, e a voz estridente do diretor tornou-se um pouco mais grave, como se a sua boca tivesse ficado de repente cheia de terra, e momentos depois já todos atirávamos terra lá para dentro, guardas e prisioneiros. Quando o buraco ficou cheio, por fim, deixámos de ouvir os berros do Diretor. Nesse momento, o sol incidiu sobre as pequenas árvores na extremidade no jardim, e alguns de nós vimos que eram seis e outros viram que eram doze, e entrámos todos por ali adentro, em direção ao desconhecido.
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Corro como nunca o fiz na vida, como se as minhas pernas não fossem realmente minhas...
ResponderEliminarAs arvores pareciam estar cada vez mais distantes, mas por muito sádico que isto possa parecer, o jardim fazia-me sentir uma criança outra vez. Estava a correr como nos tempos em que era livre, rumo ao sol, ao infinito, com apenas a liberdade em mente.
Mas a possibilidade de saberem o que disse na noite passada, aterrorizava-me... Quando os guardas me pediram para escolher uma cela eu congelei, mas no meu silencio olhei o capitão dos guardas nos olhos. Lembro-me claramente do brilho nos olhos dele, castanhos como os do meu filho, a forma como ele me olhava trazia um conforto arrepiante, como se ele soubesse quem eu era.
Era ele, ali à minha frente, o meu irmão mais novo.
Quando era adolescente o meu irmão nunca aceitou as condições de vida que tínhamos, não o condeno, o meu pai vivia bêbado e a minha mãe aparecia em casa quando o rei fazia anos. Poderia ter cuidado dele, mas estava mais preocupado em ganhar uns trocados a roubar mercarias.
O meu irmão saiu da minha vida da mesma forma como apareceu nela, de surpresa e sem qualquer aviso, lembro-me de um dia chegar a casa e estar sozinho, sem ninguém por perto.
Não estava a acreditar que o meu irmão se tinha tornado num guarda prisional, no máximo esperava encontra-lo como meu colega de cela ou assim.
Baixei os olhos enquanto ele e os outros guardas se riam, quando eles se afastaram de mim, olhei um pouco mais à frente e vi um pequeno guardanapo da cantina.
"Amanhã vamos estar os dois debaixo do mesmo sol"
Eu estava debaixo de um sol, mas não via o meu irmão, só tinha coragem de olhar em frente em direção ás arvores, olhar para trás parecia ser algo impossível naquele momento. Quando cheguei ás arvores estava exausto, e vi que eram realmente seis...
ResponderEliminarDeveriam faltar 30 passos para a extremidade do recinto, o sol ainda batia e aí vejo que na realidade tudo o que separava os prisioneiros da liberdade era uma pequena cerca de arame.
Era o medo que nos mantinha dentro do recinto da prisão, vivia na caverna da minha ignorância.Todos estávamos trancados pelo medo, um medo da morte, era bizarra a mente do diretor que enterrava pelo gosto de enterrar, numa busca constante pela despedida.
Naquele momento a minha liberdade tinha um sabor agridoce, porque ao saltar a vedação deixava para trás o meu irmão.
Pensei por momentos e saltei...
ResponderEliminarAinda hoje espero pelo nascer do nosso sol.
Estas palavras surgem por consequência de uma morte também por elas provocada, e poderão em última instância servir de epitáfio.
ResponderEliminarDe início as coisas foram estranhas, ninguém encontrou a saída da prisão. No jardim as árvores afinal escondiam apenas outras árvores maiores e mais largas, no edifício todas as alas eram comunicantes, os prisioneiros não sabiam como sair dali por motivos óbvios, e os guardas chegaram à conclusão que por patrulharem todos os dias os mesmos sítios desconheciam a maior parte recinto. Parecia um pesadelo, a liberdade estava mesmo ali, mas ninguém sabia lá chegar. Revistaram todos os recantos ao longo das semanas seguintes, não encontrando nada para lá do insucesso. As buscas foram suspensas a bem da paz social, após se começarem a suceder confrontos entre ambas as facções.
Assim, foi convocada uma reunião de emergência na qual foram aprovadas por unanimidade medidas consideradas fundamentais e justas para ambas as partes. Desde logo, até encontrarem uma saída, jamais voltaria a haver um diretor, ninguém queria ouvir novamente aqueles discursos horríveis. De seguida, tanto uns como outros concordaram que a linguagem era tão perigosa como quem a usa, por isso, enquanto ali estivessem, o edifício passaria a ser chamado de condomínio e todos os que o habitassem, sem excepção, seriam considerados condóminos. Por último, a condição imperativa para a aprovação final das reformas foi a realização de assembleias mensais, nas quais os condóminos pudessem expor o seu desagrado e as suas sugestões. O evento seria presidido por uma administração rotativa composta por membros de cada ex-facção.
Durante um ano e tal as coisas até correram bem, os ex-presos dormiam com a porta das celas; dos quartos abertas e os ex-guardas faziam o que queriam, uma vez que não respondiam a um patrão. Todos dizíamos "bom dia vizinho", e a vida funcionava, melhor do que antes certamente, dentro da liberdade que nos era possível.
ResponderEliminarNo entanto, com o passar do tempo o tédio apoderou-se do condomínio, nem sequer se ouviam discussões porque davam demasiado trabalho. Já quase ninguém comparecia nas assembleias, uns porque se diziam representados pelas palavras de A ou B, outros porque julgavam-se sozinhos e distantes dos demais. Foi aí que para me entreter pedi a palavra e comecei a construir frases que se sucediam entre si. Eu deixava-as fluir livremente até que, primeiro um, depois todos, se levantaram e apontaram-me o dedo, acusando-me de ter matado o único tipo que, apesar de escolhido, sobrevivera ao extermínio de guardas e seguranças. Aliás, além de me culparem por uma morte que ocorreu pouco depois do enterro, disseram inclusive que eu era o próprio do diretor.
- Bang?