Depois de "Upturned Face", de Stephen Crane
Estranhos na noite
Como era
hábito depois de jantar, preparei-me para sair de casa em busca de algo. Podia
ser prazer ou medo, provavelmente ambos. Fingindo não querer nada com o mundo,
deixei o apartamento de cabeça baixa, olhos na calçada, uma mão na algibeira da
gabardina e outra sempre disponível para manusear o cigarro, que ardia a toda a
velocidade nos lábios, fumado pelo vento vindo do rio. O percurso até ao bar fazia-se sempre a direito, e parecia sempre
igual por culpa da escuridão. De tal modo que nas noites mais ligeiras demorava
cerca de quinze minutos e nas conturbadas mais de uma hora.
Nessa noite, ecoavam pelo parque contíguo ao meu caminho os rugidos de crianças que corriam
e exultavam com a sua pequena liberdade, figurada no bater do vento nas faces.
- Talvez sejam os amantes mais
radicais da liberdade aqueles para quem, a dada altura, o desejo pelo vento
seja substituído pelo da violência – fulminou-me.
A mão, que
há pouco tinha dito repousar na algibeira, seguia, na verdade, apoiada no
coldre da arma que por causa de pensamentos como este, trazia sempre comigo nos
passeios noturnos. Sabia que Sartre tinha razão: o olhar está efectivamente no
mundo; sentia-me continuamente vigiado, acreditava que a pacatez daquele local
era enganadora e que se tratava de uma armadilha para me conseguirem apanhar
desprevenido. Estava decidido a não deixar que tal acontecesse, portanto, saía
sempre expectante e preparado para que, de repente, o cenário ruísse e os meus voyeurs fossem finalmente revelados.
Para já, era mais uma noite igual a todas as outras. A luz dourava o pavimento,
e o cheiro nojento do lixo amontoado junto ao caixote assinalava o meio do
trajeto. Ao fundo, uma lindíssima miríade de insetos cintilava junto à fonte de
luz que os entretinha.
- Precioso. - pensei – São milhares e
estão reunidos naquele determinado sítio por um motivo comum: a luz que os faz
dançar. E por dançarem tão rápido transformam-se em pequenos astros, capazes de
ensaiarem uma pequena constelação diante do candeeiro. Pena é que a sorte raramente
abone a favor de diminutos seres dançantes – concluí desiludido.
Sem me
aperceber tinha alcançado o bar. Não tinha noção das horas, mas a julgar pela
embriaguez dos demais, chegava tarde. Sentei-me ao balcão, pedi uma bebida e
olhei de soslaio para a pista de dança onde, no meio de feições animalescas, se
destacavam duas admiráveis figuras ondulantes, apenas reveladas pela luz
intermitente, que surgia sincronizada com a batida. Jamais ousaria aproximar-me,
pois vejo mal ao longe e não suportaria tamanha desilusão. Estava feliz assim e
optei por preservar a imagem das duas musas desfocadas que a fantasia se
incumbia de retocar. Esbocei um sorriso, peguei na gabardina, suguei o fundo do
copo, e rodei sobre o banco em direcção à porta. Ao fazê-lo, o meu ombro
esbarrou noutro, de um rapaz que contra mim praguejou. Antes de sair ainda
espreitei; já dançava de mãos dadas com as musas.
Estava de
volta a casa, mais uma vez, sem que nada tivesse acontecido. Corri o estore,
deixando espaço para que o ar pudesse circular, e fui-me deitar, atordoado pelo
silêncio.
Os olhos
demoraram a abrir, tanto quanto demorei a perceber que os gritos vinham da rua
e não de um sonho.
- Outra vez uma festa na mata –
murmurei.
Imediatamente
constatei que não era uma festa; distinguia duas vozes, ambas descontroladas,
uma pela raiva, outra pelo medo. Nada mais. Vinham de longe e as palavras eram imperceptíveis
mesmo depois de abrir a janela de par em par. Tentei espreitar, mas só vi duas
sombras atrás de um carro parado. A figura A,
enfurecida, gritava e gesticulava ferozmente, de pé, na direcção da porta do
passageiro; a figura B estava sentada
dentro do carro e cada vez que intervinha parecia ter a voz enrolada pelo choro.
O estore, que dava acesso à varanda com vista para a mata, era velho e estava
de tal modo enferrujado que chiava bastante quando era corrido, por isso
hesitei em fazê-lo e permaneci encostado aos buracos a espreitar, não fosse eu
precipitar o descalabro da situação. A discussão era cada vez mais acesa e
opunha a ira de um, ao terror de outro. Petrificado, de telemóvel na mão, não
sabia como agir.
- Pode estar prestes a ocorrer um
crime; talvez seja uma discussão entre amigos, ou será antes um casal? A parece estar prestes a ceder às
tentações mais sombrias, devo chamar a polícia; – solucei, atordoado - mas a
polícia vai demorar uma eternidade, e assim que disser que são duas pessoas vão
supor tratar-se de uma discussão conjugal, e por aqui ainda se julgam no
direito de se absterem em situações desse tipo; mas sei lá eu se são um casal!
Posso fazer barulho e afugentar A,
para que B possa tentar fugir...
Merda, serei rapidamente descoberto, ou até culpado pelo homicídio caso A se assuste e prima o gatilho. Condenar-me-ão
moralmente pelo assassínio de B; se
permanecer aqui, calado, nunca saberão da minha existência e desde que seja
capaz de controlar a minha própria imaginação, a vida permanecerá igual e
amanhã será dia novamente; merda, merda, que estou eu a pensar! Devo descer até
ao local sorrateiramente, levo a minha arma e acredito como Jacques que tudo o
que nos acontece estava já escrito lá em cima! Merda, merda, merda! Essa frase
é de um romance e poderia tornar-me um assassino, vitimado pela má
interpretação; podem estar a ensaiar fora de horas um texto dramático,
Shakespeare ou Beckett, e eu, precipitado pelo medo, seria responsável pelo
disparo que tiraria a vida de um ator, ou de uma atriz! Mesmo que não seja um
ensaio, A pode estar à paisana, encenando
um ato criminoso, para que B possa escapar
impune e livre de perigo. Mais uma vez poderia ser eu o culpado pelo fracasso
da delicada operação policial e involuntariamente sentenciaria dois pobres
seres à morte! E quem sou eu para decidir quem merece ou não viver!? – soluçava,
enquanto o vento e o suor frio me gelavam as faces.
A e B gritaram como nunca, a porta
fechou-se num estrondo, a ignição ecoou, o acelerador foi pisado com violência,
as rodas derraparam na terra húmida, o veículo saiu disparado, os meus joelhos
cederam, larguei a caneta, caí na cama, a cara contra o colchão, e num instante
perdi o rasto sonoro do carro em fuga.
- Bang!
Francisco Correia, 2019.
Hoje, entrei no bar de sempre, mas a dormência não era a de todos os dias.
ResponderEliminarSentia o espírito solto para dar conta do que o acaso me sugerisse.
Estava de volta às musas, desfocadas como sempre as quis,
impassíveis, como convinha a tumultos de bar costumeiros.
A música manava de dentro, com batida inserta.
Tinha já o corpo aquecido pela miríade de possibilidades que a visão turva da musa atiçava. Quanto mais olhava, mais a musa desfocava.
Celestial divindade, festiva e jubilante. Toda canto e uivo e prazer.
E agora podia vê-la de olhos fechados. Intuir. Sem sentir.
Compor a gosto as imagens pré fabricadas das divindades.
Dar largas à luxúria e ao vício porque preciso de um exército, de musas,
pra combater o vazio.
Os mitos, os fetiches todos, depositados na mesma figura.
Cismar apenas. Sem fazer dela intimidade concreta.
Quanto mais olhava, mais a musa se dissipava.
Podia vislumbrar agora finais possíveis para o horror, se a pudesse agarrar.
Pra sempre minha. Pra sempre musa, infalível.
Quanto mais a queria, mais a musa me fugia.
Com os sentidos dissonantes, em desalinho,
arrisquei com uma mão e depois outra, detê-la.
Impossível. Sumia.
E com ela o meu alento.
Repeti-me em movimentos vãos, desatados e furiosos para fisgar a deusa.
Que já mal via. Só pressentia.
Do coldre da arma, manuseado pela dança descambada em luta, estouraram dois tiros.
Olhei para baixo e vi, um em cada pé.
E ali mesmo, perante a multidão de estranhos na noite, eu desfalecia.
E a musa, essa, nem existia...