"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Memórias

Prosopopeia (1.ª tentativa)
Já não me lembro como é que viemos aqui parar. Sei que não viemos pelo nosso pé. Ainda assim, quando cá chegámos o futuro prometia. Éramos novos, estávamos em forma e, sobretudo, tínhamo-nos um ao outro. 
Normalmente íamos sempre para o mesmo canto, mas ainda assim, dentro do panorama dos restantes dávamos um bocado nas vistas. Por isso, era a nós que nos escolhiam com mais frequência. 
Tentámos desde o princípio dar-nos bem com todos, mas nem sempre foi fácil. Quando chegámos percebemos que havia uma transparência entre todos que invejávamos, mas que a mim não me era nada natural. Nesse aspecto ela sentia-se mais em casa, estava mais habituada a este à vontade do que eu, que sempre fui mais opaco. Ainda assim, era uma convivência muito arrumada, cada um sabia o seu lugar, e ninguém se chateava.
Sempre que nos escolhiam a nós ficávamos entusiasmados, porque nos levavam sempre para sítios diferentes. Além disso, éramos muito bem tratados e normalmente escolhidos para os dias de festa. Assim, apesar de cansados, voltávamos sempre contentes e de cara lavada.
Mas a meia idade chega para todos e, às tantas começámos a ficar mais moles. Por isso, se no início nos faziam galgar quilómetros até ao trabalho, agora já não arriscavam tanto connosco e já não íamos muito longe.
Por esta altura, começámos também a perceber que nos calhava mais roupa velha. Ao princípio não nos importámos, até porque eram sempre coisas boas. Mas o desgaste também se começou a notar em nós. Sobretudo nela, que andava mais irritadiça e irrequieta. Começámos a discutir e notava-se: já não voltávamos tão unidos como dantes. 
Depois de um dia particularmente difícil, foi a gota de água: saltou-me a tampa. Como é transparente, não consegui perceber para onde foi – e os nossos donos também não. Nunca mais pegaram em mim. 

Se fosse de vidro como os outros ainda me poderiam reutilizar como pirex, mas a um tupperware sem tampa já pouca esperança lhe resta. Ainda por cima sou de plástico, portanto não tenho ilusões de algum dia vir a ser reciclado.
Inês Avelar, Outubro 2019.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O Destino de Cada (Prosopopeia)


O destino de cada
      Taïs Reganelli
- Tem alguém aí? Ei!
Ouviu um burburinho, cochichos, mas ninguém respondeu. Em seguida, a porta foi trancada. Esperou muitas horas ali, estagnada, pensando no seu passado, naquilo que já tinha visto, mas não havia visto muito. Tinha apenas uma lembrança muito remota.
O tempo corria e ela, solitária, só percebia os dias passarem por causa do calor e da luz do sol que iam e vinham. Teias de aranha, poeira e a própria solidão começaram a se instalar e a incomodá-la.
Sou uma cadeira mal-amada, concluiu, derrotada. Não era velha, não estava quebrada e mal tinha começado sua vidinha proletária. Não entendia a razão.
Um dia, não sabia dizer quanto tempo depois, ouviu passos. Arregalou os olhos, ficou eufórica. Desta vez não chamou por ninguém; preferiu observar a situação. Ouviu a porta rangendo e descobriu que estava de costas para ela. A vida é mesmo muito injusta: finalmente tinha a chance de ver o que acontecia ao seu redor, mas não pôde se mexer, claro, era imóvel. Era um móvel. A língua também tem suas ironias...
Quisera ao menos ter tido a sorte de nascer balanço, ou uma dessas cadeiras de escritório, cheias de parafernália, rodinhas e o diabo-a-quatro. 
Mas não demorou e num vapt saiu voando pelas mãos de alguém. Ela não tardou a reclamar: - ai, me põe de volta no chão! Mas enquanto o seu destino não chegou, ninguém a soltou.  Os passos foram ficando mais lentos, ouviu uma conversa sobre onde ela deveria ficar e pronto, lá estava. Aquele seria o seu lugar. Antes disso, era apenas um não-lugar, um depósito, um almoxarifado de espera, um abandono premeditado e planejado.
Mal se instalou e já ouviu o “conversê” geral. Todas as suas colegas estavam eufóricas, conhecendo umas às outras, tentando descobrir qual era este novo lar. Já ela era tímida, preferiu ficar calada. Não era difícil perceber; havia um quadro negro, carteiras de estudantes, ou seja, ela e suas colegas já tinham um novo propósito de vida: acolher bundas de jovens estudantes, ou, para alguns, acolher rabos.
Pois bem, até aí não há novidade alguma, as cadeiras são feitas mesmo para isto: abrigar bundas. Toda cadeira acolhe bundas, mas há sempre uma apreensão em saber que tipo de bunda lá vai estar.
Nesta noite não conseguiu dormir, ficou muito ansiosa. Logo cedo, na manhã seguinte, ouviu o sinal e crianças entraram correndo na sala, cada qual escolhendo seus lugares. Ela queria mesmo era fazer amizade com a sua bunda. Triste seria abrigar nádegas duras, sem alegria de viver. Sentou nela um garoto de uns quinze anos e ela logo se afeiçoou a ele. Ele lhe fez companhia dia após dia e ela gostou particularmente de quando chegou o inverno, quando ele usava calças quentinhas que lhe aqueciam também. Havia dias de pura peraltice, os dias que precediam um jantar de sopa de feijão ou brócolis. Ela ria-se toda da fedentina que lhe invadia as madeiras. Dias ruins eram aqueles em que o moleque faltava à escola. Não acontecia com frequência, mas se sentia tão só…
Não se queixou, mas logo no primeiro dia sentiu uma beliscada forte. O miúdo tinha sempre agarrada ao bolso de trás direito uma chave muito pontiaguda. A chave da sua casa. Com o passar do tempo, foi se acostumando àquela dor. Era uma dor de amor, não era um grande problema.
Era um amor unilateral, claro, mas era bom, era amor.
A cada dia que passava, a chave passou a ferir cada vez mais a cadeira. Ela tentava alertá-lo, mas ele não entendia. Ela sofria e ele continuava a sua vida escolar sem dar importância àquilo que o mantinha sentado por horas e horas todos os dias.
O corte foi ficando profundo, o que alimentou a imaginação do adolescente. Já havia algum tempo, ele andava mal-educado, ingrato. Colava chicletes nela, riscava a tábua… Vendo a fenda que a chave tinha causado no tampo da cadeira, teve uma brilhante ideia. Pegou seu canivete, escondido, e começou a cortar deliberadamente toda superfície lisa encontrada. A cadeira foi tomada de uma profunda tristeza, não podia imaginar que justo ele, seu companheiro, lhe faria tanto mal.
Já extremamente deprimida e desejando virar lenha, viu acontecer uma inspeção no material escolar e em todo o estabelecimento de ensino, e que incluía toda a sala de aula. Era o fim do ano letivo. Após ter sido minuciosamente analisada, foi levada, lixada, pintada, consertada, reformada... A sua estrutura, que estava sendo decomposta, eram sua memória e personalidade, por isso, foi esquecendo a própria história. Esquecendo… esquecendo… Uma lixada, uma memória a menos, uma demão de tinta, uma história esquecida. Adormeceu.
Ouviu uns gritos abafados, estava zonza e confusa. Sentiu um solavanco. Alguns minutos depois, ouviu qualquer ordem dada, viu uma claridade e logo apagaram a luz.
- Tem alguém aí?

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Prosopopeia



Não sei onde começou a minha história. O que é desde sempre? 


Vamos começar pelo que possas conhecer, ou pelo que possas acreditar. 


Talvez tenha nascido de uma explosão, aquela grande explosão, e esteja ainda a acompanhar a sua expansão. Mas talvez essa explosão e essa expansão só aconteçam através de mim.


Eu estava lá quando as estrelas nasceram e quando queimavam vivamente. Estou lá quando explodem, ou quando a gravidade puxa as partículas para ela própria, crescendo para se tornar algo novo. Eu estarei lá a vê-las morrer e arrefecer. Quem sabe quando voltarão a queimar de novo?


Eu fui, sou ou serei, dependendo de como e quando olhares. Não consigo deixar de ser diferente dependendo da gravidade ou entendimento da situação. Talvez não seja eu que mudo, mas sim a percepção que os outros têm de mim, apesar de nunca me conseguirem ver. Por outros, quero dizer tu.


Tu tentaste medir-me através do sol e da lua, pelo passar das estações criadas pela inclinação natural do eixo de rotação da tua casa. Tu tentaste ver-me como areia e tentaste prender-me numa ampulheta, or como ponteiros num relógio, ou séries de zeros e uns. Tu usaste números e equações, na tentativa de me restringires a uma definição, de explicares a minha existência. Tu tentaste controlar-me e, de certa forma, sou eu quem mede e controla a tua vida, fazendo nada mais do que existir.


Posso ser gerido, de acordo com os teus próprios termos, mas nunca ninguém será capaz de me tocar e de me agarrar e de me virar, muito menos de compreender a minha existência. Alguns de vocês têm, ou tiveram, ideias belas ou tristes ou extasiantes sobre mim. Outros de vocês estiveram perto de chegar à superfície do meu ser.


No final, para ti, para vocês, não passo de relações com outras coisas.


Talvez seja um círculo interminável, mas nunca uma progressão de causa-efeito, como normalmente olhas para mim. Mas na verdade, tu não és mais do que um grão de areia num deserto sempre em expansão. 


Será que consegues viver sem mim? Será que algo consegue existir sem a minha interferência?


Sou imparável. Sou inevitável.


Não sei quando comecei. Ou talvez eu seja quando e quando seja desde e para sempre.


Link para o texto original:
“Inktober 2019 Day 23 — Ancient”  https://link.medium.com/sx2OffVen1


Ana Martins, Outubro 2019

Propósito




Propósito

Fomos apanhados de surpresa junto ao lago, no local onde costumávamos passar férias. O vento soprava e abanava a pequena casa de madeira onde nos refugiávamos. Depois de eu medir a temperatura e calcular os riscos de ir lá fora, decidimos que sair iria colocar em perigo tudo aquilo que não ousávamos perder.

Demos o nosso melhor para isolar todas as frestas, todas as portas e janelas por onde pudesse entrar o ar gelado. Fomos mesuradamente queimando lenha para nos mantermos aquecidos, até que a única madeira existente era a que nos resguardava do temporal. Não havia muito mais a fazer para combater o frio

- Deixa-me cá fechar os olhos. - disse o velho, na semana anterior. - Só por um bocadinho.

Mesmo após os meus esforços incontáveis para o impedir de o fazer, ele foi o primeiro a morrer. Foi quando tive a certeza que não havia nada a fazer. Nunca existira esperança. Posteriormente, todos os outros deixaram-se levar, um por um.

Naquele dia, após o adolescente, por quem desenvolvi um carinho especial, sucumbir ao calor do sono, a tempestade cessou. Estava sozinho.

«É isto? Acaba tudo assim?» Pensei.

Depois de lubrificar as minhas articulações, abri a porta com o meu braço mecânico e deixei entrar uma fria rajada de vento. Já não tinha importância. O meu coração de lata nada sentia. Comecei a andar, para longe da morte.

«Vou acabar por enferrujar, deixar de me conseguir mover. O meu corpo acabará por ser destruído. Por quanto tempo estarei consciente do que me rodeia?» Aquela ideia havia sido plantada no meu chip de memória muito antes. «No final, acabarei por deixar de existir.» Esperava.

Nada se movia para além das minhas pernas. A cadência dos meus passos não sofria qualquer alteração no ritmo. Tudo estava coberto numa fina camada de gelo. O sol pálido espalhava a sua luz fraca em tons de branco e cinza. As árvores despidas estavam congeladas. Primeiro, reparei num rato aconchegado pelo gelo. Depois, vi um passarinho, cujo movimento ficara parado no tempo. Depois um esquilo, um gato e um lobo. Quando comecei a reconhecer as expressões e os rostos azulados, entre os seres outrora vivos, quis retirar o chip de emoções, mas este não saiu. E estava sozinho.

Uma semana, nove dias, oito horas, quatro minutos e vinte e três segundos. Sei exactamente quanto tempo passou desde o momento em que saí da casa até chegar à cidade mais próxima. Conseguia consultar o meu relógio interno a qualquer momento. No entanto, a progressão da passagem do tempo, ou pelo menos a minha percepção da mesma, tinha mudado por completo. Nunca dormia, apesar de me pôr em piloto automático, durante algumas horas. Era a forma de processar e fazer backup de toda a informação que estava a recolher.

«Os meus mestres desapareceram tal como a minha finalidade.» Mantive o ritmo, enquanto analisava os edifícios que se erguiam para tocar no céu. «O que vou fazer agora? Fui criado para servir, ajudar, fazer companhia.»




A neve quebrava debaixo dos meus pés de metal. Os dias tornaram-se semanas, as semanas meses. Não restava nenhuma vida e ainda não conseguia inteirar-me com o conceito da solidão.

«Posso tentar construir algo que tenha o mesmo propósito que eu tive um dia.»

Procurei por restos de metal no meio de uma sucata antiga, ignorando o facto de que aquele acto não devolver sentido à minha existência. Bem sabia que aquele vácuo nunca seria preenchido.

Encontrei a motherboard de um computador velho. Longe de ser o último modelo, era suficientemente adequada para ser utilizada. O processador não era o melhor, mas pelo menos não necessitava de um sistema de arrefecimento, dadas as temperaturas extremas. Comecei por trabalhar no chipset seguido do armazenamento de memória.

Aquele trabalho mantinha os meus componentes a funcionar e o frio não se fazia sentir tão intensamente. Não que conseguisse experienciar essa sensação, não da forma como sentia o sobreaquecimento.

Assim que acabei de montar tudo o que era necessário para o processamento de informação, bem como os seus cálculos, testei e fiz ajustes. Enquanto isso, fui recolhendo objectos e acessórios peculiares, com os quais, mais tarde, poderia decorar o revestimento.

Construí os sensores necessários à captação de dados exteriores, bem como um sistema energético auto-sustentável. Utilizando um dos meus chips sobressalentes, programei as comandos e interacções básicas.

Meses se passaram, enquanto repeti este padrão vezes sem conta. Depois de infindáveis testes e reajustes, liguei-me ao novo ser para lhe passar energia. Apesar da sua forma não ser humanóide, como a minha, tinha um ar bastante engraçado.

«Está pronto, por fim.»

Assim que o liguei, milhares de pequenas luzes acenderam-se no visor destinado a ser a sua cara, a sua forma de mostrar reacções. Um sorriso formou-se e uma voz computadorizada cumprimentou-me:

- Boa tarde! Em que posso ser útil?

Estava tão surpreso, que não soube reagir. Por momentos, quase senti algo espontâneo, algo que não estava programado a sentir. Um vislumbre de felicidade passou pelos meus circuitos, em forma de electricidade. Ao olhar para a minha criação, quase senti orgulho.

- Boa tarde! Em que posso ser útil?

Aquilo em nada se parecia como a minha clara e agradável voz. Soava demasiado falsa.

«Eu sou assim? Afinal de contas, também não passo de um embuste.» Era bastante irónico. Apesar de não experienciar emoções e sentimentos por mim, a minha base de dados continha uma descrição de cada conceito, tal como os sintomas e reacções do corpo humano.

- Boa tarde! Em que posso ser útil?

A voz exasperante começava a irritar os meus receptores sonoros.

«Poderei estar a ganhar consciência própria?» Tentei livrar-me daquele pensamento. Eu não passava do produto do código que fora me fora atribuído. «Há tanta probabilidade de eu conseguir criar um ser que se consiga desenvolver por si próprio, quanto a de eu fazer o mesmo por mim.»

- Boa tarde! Em que posso ser útil?

O meu processador começava a aquecer sem razão aparente.

«Será frustração?» Um segundo depois, apercebi-me do quão ridículos soavam os meus pensamentos. «Não tenho capacidade de sentir emoções.»

- Em que posso ser útil?

- Dá-me um significado! Dá um sentido à minha patética existência!

Não estava, de todo, à espera da minha própria reacção, mas não consegui deixar de o tentar desligar. Não resultou.

- Boa tarde!

Atirei-o contra uma parede. Não foi o suficiente para o destruir. Num rasgo de insanidade, não parei de lhe dar pontapés, até não restar mais nada para além de pequenos pedaços.

Acabei por arrefecer e olhei para os destroços. Não sei se as acções foram fruto de um defeito mecânico, de um glitch no software ou de um bug no meu código.

«Não são mais que um reflexo das minhas ideias absurdas.»

Comecei por recolher os restos espalhados no chão, enquanto pensava numa forma de os melhorar. Teria de repetir todo o processo que havia demorado meses. Pelo menos, sabia que tinha de fazer uma alteração aqui e ali.

«Desta vez vou criar algo com importância.»

 Ana Martins, Outubro 2019

sábado, 2 de novembro de 2019

Nunca me abraçaste


Há dias que me revolve a sensação de uma noite interior. E não, não me lembro quando se instalou. Talvez tenha de ser mesmo assim. Às voltas com os papéis procuro palavras que me resolvam definitivamente esta impressão de estranheza. Hoje conheci outro de mim. Ao olhar nos olhos o reflexo do meu próprio rosto encontrei um outro rosto desconfortável, que vinha não me lembro bem de onde, que se foi aproximando até estar perigosamente perto. Era um eco real o suficiente para se diluir fatalmente por entre as palavras que me têm visitado num sonho…
                                                                                                                     Branco. Quando se entra no quarto a impressão é de branco. Talvez cru, ou a nudez no pano da tela a monopolizar o espaço. E acordar, devagarinho. Demorar-se como a luz que resgata a brancura da pele das coisas. Pena que não tenha pele, eu. Pena que não tenha pele e seja o paradoxo, que me ponho na pele de toda a gente, de todas as coisas, de tudo o que há.

Ali, espelhas-me nitidamente. Vejo no teu rosto vítreo a transparência de espelho que se estende ao pano opaco de uma tela que pinto todas as noites, para depois me despojar dela e arranjar outra, de novo crua, opaca, branca. 

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Em todas as noites que terminam me recolho a esta ilustração a que me devolves como as entrelinhas de um texto. Quando te leio vejo-te o rosto, a respiração, o compasso acelerado a pulsar nas veias… Mas não devia ler às avessas.
Tu podes, que não estás do avesso. É por isso que te rasgo a tinta ao longo daquelas  páginas , para te esvaziar depois, mas preencher primeiro.

Dou voltas pela sala e reparo que, na minha mão está cerrado um caderninho em branco, sedento de tinta. Sento-me a um canto no chão e sinto o espírito fender-se-me devagarinho. A sala torna-se difusa e, aos poucos, vou-me misturando com os contornos do espaço. Tenho sono, vai-me embriagando a dormência até que já não sinto senão o caderno a incorporar-me por dentro das palavras até ver novamente o espaço em branco onde o que há é 
                                                                                     
                                                                                                       Azul… Ali um pouco de carmim. Sim, carmim. Aqui…Prússia! É isso, Prússia. Confessa lá, sempre gostaste de Azul da Prússia. 
Está correto. Vamos terminar… No fim talvez se veja o que ficou em branco. 

E por falar em branco, preferias ter ficado em branco? Eu cá sim. Fico muitas noites em branco, só a tomar o gosto das texturas. A sensação de 
                                                                   Liso
                                                                   Macio
                                                                   Áspero
                                                                   Áspero
                                                                   Rugoso
                                                                   Macio
                                                                   e Áspero outra vez
                                       
                                                                                                                                             O lençol esticado onde me deito e que ora arranha, ora se enruga, continua a ser pano cru. Sempre.
Desculpa-me! Onde íamos, outra vez? Ah, sim! A Prússia. As noites em branco… Hehê! Curioso, há noites em branco na terra desse tal azul que combina com carmim.
Ah…! O estender da tinta pela tela, a pele que se estende… O corpo todo!
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O corpo todo que pesa, que pesa… Não, espera! A luz… 
Pesam-me as pálpebras, como de resto todas as vezes em que acordo. Parece que terminou o namoro com a forma dos sonhos. Sempre gostei da forma como me envolve o pintar do teu retrato… do teu corpo todo que incorporo alheio em mim.

Tenho saudades da minha mão firme. Não sou capaz dela, por agora. Não sou capaz de ver claramente os outros que aqui estão… Parece que a vida lhes foi suspensa. Os olhares são essencialmente vazios. O caderno está pousado ao meu lado, vazio também. Temo que mo levem. 
Neste instante ouço sonoros os gritos no corredor pentagonal que os meus passos engolem agora furiosamente, numa perseguição louca: “O caderno não! O meu retrato…! Não mo vais roubar, não me vais levar o rosto, não te atrevas!”
Sinto o impacto pesado dos corpos no chão. Não controlo os braços que golpeiam o ladrão até que já só há a vertigem da minha respiração ofegante. Morto? Como assim, morto?? Não, Não… NÃO!! Larguem-me! Ele não pode… Não! Não o matei, não me levem… o caderno, o ca…der..n… O…ca..de…rn…

Não sei como vim parar aqui. Não há janelas, nem ângulos nas paredes. Há correias na cama, mas não há lençol. Trocaram-me a roupa… ouço-te a voz meiga
                                                                                                                           Bom dia, minha flor. O beijo na face , como sempre. Os beijos fazem um barulhinho curioso. Às vezes rio-me com o eco desse barulhinho. É curioso como os ecos não se veem até se manifestarem. São como reflexos de presenças que já lá não estão… 

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“-Está na hora!”
Oferecem-me pastilhas.
E foste… E já cá não estás…! Ficou quieto um esboço inacabado escrito na pele que beijaste… Um eco.
                                 Resiste à ausência até ser noite e entrar por mim adentro para me abandonar ao abraço do leito suave. 
Este sono meu, que suaviza o caos interior não tem, como os sonhos, textura nenhuma. E é uma tessitura sem ser tecido. 

                                                                   Liso
                                                                   Macio
                                                                   Áspero
                                                                   Áspero
                                                                   Rugoso
                                                                   Macio
                                                                   e Áspero outra vez…
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Aos poucos volto a acordar. Percebo um burburinho atrás das portas do corredor. São eles, vão dar a notícia aos que vêm aí. Pensam que não se ouve nada aqui dentro. Explicam que foi um acidente. Que a ninguém pode ser imputada a culpa. Que tomaram medidas pesadas, apesar de tardias. Que estou a ter o que mereço. Que não há mais nada a fazer. Que lamentam mas é assim, nestes lugares… Acontece. Sinceros pêsames. E vendo bem, até foi melhor assim. Era um sofrimento muito grande. Não sofres mais. Ponto final. Vão-se embora. Abro o caderno. Estúpido caderno! Não me reflete bem agora, assim manchado de sangue…
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Movo-me irrequieto. A janela abre-se num repente, os meus papéis esvoaçam sem ordem e sinto-me levar com violência pela intempérie. Luto contra o rapto, mas já não sou um corpo, já não tenho forma. Falta o ar, mas já não respiro, revolvo-me! Estou à mercê deste voo alucinante, sinto o ar a chicotear o texto em que me retratei inacabado. Procuro alcançar o caderno, mas não o alcanço, foge à mercê da tempestade. Num outro repente tudo fica branco, com um clarão.
Acalmo-me. Apercebo-me de que já não tenho peso, porque não preciso. Agora todo eu sou a sensação das texturas de 
                                                                   Liso
                                                                   Macio
                                                                   Áspero
                                                                   Áspero
                                                                   Rugoso
                                                                   Macio
                                                                   e Áspero outra vez…
Preenche-me uma angústia inominável. 
Dobra-se-me o estômago, revolvem-se-me as entranhas e tento gritar, mas não posso! 
Porque acordei numa golfada de ar e foi só um sonho. 
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Escrevo realmente sonhos ou faço escrita uma realidade sonhada?
Estou desperto para a evidência de que adormeço e acordo para adormecer outra vez.
Procuro-me na tua clareza, naturalmente. Estás agora do avesso dentro de mim, ou sou eu que agora estou dentro do avesso de ti?
Olho para ti sempre em busca da imagem do meu rosto…
Meu reflexo, meu amor, foste todas as cores. Foste todos os tons do teu eco… Mas mesmo sendo eu lá fora, não foste o eco de mim. 
Nunca me abraçaste. 
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Estás cada vez mais frio, estás cada vez mais longe…
Já quase não sinto o caderno cerrado nas mãos contra o peito.
Parece que ainda ontem te matei. 
Ouço-os ao longe:
                             “-Há quanto tempo?”
                             “-Há já meses… Sem uma palavra.”
                             “-Sim, com as próprias mãos… e uma caneta. 
                             “-Sim, no caderno.”
                             “-Se há problema? Não, cremos que não. Já so fixa o olhar no vazio…”
                             “-Em princípio não dará problemas, mas não toquem no caderno, seria…  Terrível.”
                            “ Como? Como uma segunda morte, ou pior... 
                                                                                                             Como um texto novo.”

                             

Por Inês Gomes

                                    


 

A minhas Últimas Penas

8:30h Todos os dias me sabem um pouco ao mesmo, a bibliotecária chega, alimenta-me e fica cinco minutos a tentar que repita a frase “Bom d...