"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

A minhas Últimas Penas

8:30h

Todos os dias me sabem um pouco ao mesmo, a bibliotecária chega, alimenta-me e fica cinco minutos a tentar que repita a frase “Bom dia estudantes!”, frase que só repito se ela colocar mais sementes de girassol na minha tacinha. Normalmente eu não repito a frase e ela volta a sentar o seu volumoso rabo na cadeira. Ela decidiu chamar-me de Fluffy, em homenagem às minhas penas, é incrível a forma como os seres humanos não me dão valor, não é nome que se dê nem sequer a uma personagem de contos infantis.

10:00h

Gosto de passar o dia a ver quem passa pela biblioteca, desde os professores doutores, que todos os dias requisitam livros de variadíssimos temas, até aos alunos que desesperadamente procuram os manuais com as respostas já escritas, ou até mesmo aqueles casais de namorados que se esgueiram para as casas de banho do corredor da ala este. A biblioteca transborda em palavras, mas vive em silêncio como se o conhecimento tivesse de viver dentro de uma gruta.

12:00h

 Adoro ser o único que pode fazer barulho na época dos exames, especialmente quando saboreio as minhas sementes e ouço os estalos do meu bico a ecoar por toda a sala. Existem umas raparigas no fundo junto às janelas, lembro-me delas bem pequenas a lerem o principezinho, agora vejo-as ali a reclamar do facto de eu ser barulhento. Quem me dera que elas voltassem a mimar-me como antes, eram tão mais simpáticas.

14:00h

Odeio estar aqui a esta hora, começo a roer as raízes das minhas penas, o cheiro a frango da cantina polui a biblioteca, e o barulho dos pratos e talheres mexe com o meu sistema nervoso, fico a contar quantos livros é que a bibliotecária etiquetou, que raramente são mais do que 15 ou 20.

16:00h

Todas as semanas existe um livro que é selecionado e fica aqui exposto na entrada chamado de “Recomendação de leitura do Fluffy”, são raras a vezes em que não consigo ler o livro todo, e só para não deixar margem para duvidas, não sou eu quem recomenda os livros, jamais recomendaria esses romances melosos nos Nicolas Sparks ou aqueles horrendos diários de mulheres de políticos. Mereço o nome de Aristóteles porque li toda a sua obra, e ao ler o que ele escreve, o seu pensamento é reproduzido na minha mente, no ato da leitura, sou Aristóteles.

18:00h

Sou um pouco perverso, especialmente ao fim do dia, porque montes de vezes olho para as janelas e vejo os pequenos pardais a embaterem nos vidros e rio-me das caras deles enquanto se afastam atordoados. Sonho num dia poder ler mais do que só os livros que aqui deixam, sonho puder ser eu a escolher o que leio.

20:00h

A bibliotecária já saiu, ela troca de turno com o senhor Jorge. Ele é daquele tipo de pessoas que fala com os animais como se eles o entendessem, algo que acho só descabido, porque se ele falar com o hamster do departamento de artes da mesma forma como fala comigo, está muito enganado. Aquele hamster é claramente surdo, mas teve mais sorte do que eu, chamaram-no de Tchekov, se soubessem que era surdo não o batizavam com esse nome, mas sim com o nome de Beethoven.

21:00h

O senhor Jorge deixa-me sempre comer os restos da maça dele, odeio quando são daquelas farinhentas, fico agoniado o resto da noite, mas sei que ele faz isso por carinho, até repito a frase que ele gosta “Obrigado Jorge!”

22:00h

Finalmente os alunos do pós-laboral já saíram, eles são simpáticos, falam maioritariamente mal dos patrões e dos impostos que pagam. Ainda acho graça a eles me chamarem de velhote, posso estar com poucas penas e cada vez mais fraquinho, mas isso não faz de mim um velhote.

23:00h

O senhor Jorge saiu à pouco, hoje pareceu-me mais cansado do que o habitual, ele nem sequer fez a vistoria noturna, arrumou as coisas dele e deu-me uma festinha antes de sair. Está sempre escuro breu a esta hora.

24:00h

Tenho muita pena de não puder ter escrito mais na minha vida, só estás a ler isto porque deixaram o computador que está ao lado da impressora ligado. O meu único texto vai ter imensas cópias, se calhar até vai parar às recomendações da semana, mas vou garantir que vai devidamente assinado, até vou passar as minhas patas pelo scâner para garantir que fui eu que escrevi.

01:00h

Acho que cheguei ao meu terceiro ato, ao momento em que a paz chegou até mim. Quando eu vi que o computador tinha ficado ligado não resisti em tentar chegar a ele, mas infelizmente cortei a minha pata direita. Está a sangrar imenso, e sei que com a minha idade não vai haver volta a dar. Vou voar até ao local onde a obra do meu homónimo esta guardada, e lá vou deixar que o meu corpo se desligue. Espero que amanhã me enterrem com a dignidade que mereço, não quero missas nem rituais, quero apenas ser enterrado num canteiro de margaridas. Não preciso de lapide a identificar quem eu fui, basta cuidarem das margaridas como cuidaram de mim.


Do vosso mimético Aristóteles


Fábio Pintor | Ficção Breve | 2019

O tronco, a flor, até à queda do fruto

Ele não entende que na vida temos mais perguntas do que respostas,quer dizer, pelo
menos é o que eu acho...Agora já não tenho a certeza.
Tudo começou quando as primeiras palavras saíram da boca dele. Eu tive sorte! Ele olhou
para mim e disse “Papá”, com a minha idade ele bem que podia ter me chamado de avô.
Fui criticado por ser um pai velhote, mas nem tudo são más notícias, ele passou por uma
fase adorável, onde todo o mundo era identificado por duas sílabas, cheio de “Pópós”,
“Pipis” e “MéMés”... Mas depois disso só piorou, a minha sanidade mental começou a ser
posta em causa, alguém teve a triste ideia de ensinar à criatura que existia um bicho Papão,
que se escondia debaixo da cama dele, e que a qualquer momento poderia sair. Dei por
mim a espreitar por baixo da minha própria cama, e a dizer à mulher que procurava as
pilhas do comando da TV. Acho que consegui disfarçar bem nas primeiras noites mas a
minha mulher acabou por descobrir do que se tratava.
Pode parecer interessante para muitos, a ideia de que aquele pequeno ser humano estava
a influenciar a forma como eu penso, mas para mim era algo extremamente difícil de
lidar...Se calhar não era tão difícil como mudar as fraldas, era horrível o cheiro, parecia que
todos os dias tinha uma estação de tratamento de esgotos em casa. eu fazia de tudo para
não estar em casa nesses momentos.
A única coisa pior que a estação de esgotos foi quando os “porquês” entraram na cabeça
dele. Eu simplesmente já não sabia o que fazer, era um ciclo vicioso, que escalava
exponencialmente a cada pergunta que ele me fazia...
Estávamos a passear pelo jardim aqui pertinho de casa, e por cima dos canteiros cheios de
flores estavam abelhas, ele adorava o zumbir que elas faziam e ficava encantado a
observar a forma como elas retiram o pólen.
-Pai, porque é que as abelhas existem?
Eu respondi rapidamente -Para fazerem o mel...
-E o Mel? Porque é que existe o Mel?
-Para nós comermos, é muito docinho!
-Pai, e porque é que comemos?
-Para sobrevivermos filho, se não comeres não consegues viver!
-Mas Pai, porque é que sobrevivemos?

E foi aí que o pequeno diabo me entalou...Eu nunca gostei de teorias existenciais,mas não
podia dar uma resposta qualquer à minha cria, da última vez que o fiz, sofri imenso,
disse-lhe que as moscas que estavam mortas no parapeito da janela tinham ido para o
mesmo sítio que o falecido jarbas (o coelho de estimação), para o céu. Até ao infeliz dia que
ele me viu a matar uma mosca, passou um mês a chamar-me de assassino.
Portanto, eu estava entre a espada e a parede, mas a questão permanecia. Porque é que
Sobrevivemos?
Uma luz acendeu-se dentro dentro de mim, e decidi utilizar psicologia inversa, olhei para ele
e perguntei. Porque é que achas que sobrevivemos filho?
Por momentos senti-me feliz, ao ver que pela primeira vez o pequeno sabichão estava com
um dilema existencial.
Ele não me soube responder, mas a questão permanecia na minha cabeça, provavelmente
naquele momento eu sobrevivia para cuidar dele, para o fazer crescer, todos os dias uma
nova descoberta.
Ele agora fala mais, mais do que devia até, visita a minha carteira como uma caixa
multibanco, e o pior é que cada vez retira mais dinheiro da conta.
Será que eu fui assim? Consegues me dizer isso? Quando saíste da minha vida eu ainda te
perguntava muitos “porquês”? Ou eu não falava sequer?
Francamente preciso das respostas que a mãe nunca me deu, talvez por desgosto, ou
talvez por viver para mim. Podes me dizer o porquê de teres feito o que fizeste? Ou fizeste
isso por mim?

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Antolhos (v5) - Paulo Mariano

Antolhos


Já o conheço há algum tempo. O conhecer físico de horas a olhá-lo nos olhos. 
Olhar profundo o suficiente para perceber, além da íris, as raízes a crescerem dispersas a procurar direção. Estou em suas mãos agora. É onde passo a maior parte do tempo.
Lhe mostro o horário do próximo autocarro. Acelera ao máximo o passo, mas o semáforo o reprime. Olha para mim e escreve: perdi novamente, perdão. 
Ninguém o responde. Volta a caminhar. 
Calculo que já andara centenas de quilómetros nessa desculpa de ter perdido a condução. É notado ao andar. Tem um movimento distinto devido a uma inclinação de 3 graus em seus pés, o que reflete no comportamento de seus joelhos. Termo técnico: sobre supinação.
E de que adianta se o notam? O remexer do corpo, percebido inclusive por mim quando estou em seu bolso, já não o faz olhar para os lados? Já me tem nas mãos novamente. Olha. Nenhuma resposta.
Fazem exatamente 252 dias que escrevera um post sentado em um bar:
“O melhor da conversa é aquele alívio bom de encontrar a desgraça na fala do outro. Aquele jogo divertido de citar as mesmas três ou quatro desculpas à espera de ouvir número maior de justificativas e compará-las enquanto enxerga o medo em processo de criação. Desculpa, mas hoje ganhei. Ouvi muita história de merda.”
Talvez exista alguma relação, mas já não frequenta o tal bar desde que parara de olhar para os lados. 
Fazem quatro outonos que estamos juntos e isso deve significar algo para ele. 
Acorda as madrugadas, toma água, me olha. Parece estar a procura de algo. Talvez uma notícia, um chamado ou uma mensagem, o que já não acontece há alguns dias.
Está a ficar cego e não tenho nenhum registro de que contara a alguém. Sequer tentou.
Observo que esse olhar fixo, para ele que agora é um pedestre, causa transtornos. Esbarra em velhos, mães, cachorros, postes. Já machucara, inclusive a mim. Fato é que aquilo que lhe passa desapercebido não lhe pode ser diferenciado. São todos obstáculos. Talvez também o seja. Já o xingaram de algo que me fez concluir isto. 
No oposto ao aumento de esbarros, reduzira gradualmente os pedidos de desculpa. Eliminou o pretexto que inibia o silêncio. Está menos disperso, menos propenso ao acaso.
Retira-me mais uma vez do bolso. Nada. Nenhuma novidade.
Trago marcado como favorito, um texto de William Shakespeare: “Os homens de poucas palavras são os melhores”. Mas melhores em que? 
Tem lido o mundo de outra forma. Mudara, mas não quando olha em minha direção. Olhar atento, dedicado. Seja amor ou ilusão, para além de nós, algo está a acontecer. Ninguém sabe. Ele sabe?
Já há muito tempo analiso seus movimentos, mas não entendo suas intenções.
Minha bateria está a acabar, ainda preciso lhe contar sobre pesquisas que ele fez em mim:
Os ângulos de sua cegueira estão a aumentar. 
Em outras palavras, seu campo de visão periférica está desfocando para além do regular. 
Considerei ser o primeiro sintoma de alguma doença oftalmológica grave, um glaucoma ou descolamento de retina, mas não. 
Calculo que já perdera 95 a 105 graus de percepção visual em ambos os olhos. 
A relação é esta; enxerga cada vez menos o periférico, cada vez mais o centro. 
Está a teclar. Pesquisa sobre a palavra Íris. Listei na tela tudo o que encontrara. Uma deusa grega filha de Taumas e de Electra, descrita como uma virgem com asas de ouro, capaz de se mover em todos os lugares do mundo, o arco íris, ou então a parte mais visível e colorida do olho que tem por função controlar os níveis de luz, assim como faz o diafragma de uma câmera fotográfica. Qual o resultado lhe interessa? Tem lido todos. 
Encontrei trabalhos científicos que não deixam dúvidas sobre as etapas desta patologia. A fase inicial se dá com distúrbios na visão binocular, seguido de redução na discriminação de cores e o reconhecimento de símbolos. A descrição é semelhante ao estrabismo, mas não é isso. Não é. 
Oposto ao camaleão, que considera a acuidade visual indispensável à sua sobrevivência, este homem não sente falta do que está para além disto e não aparenta estar cego, porque vários demonstram o mesmo comportamento. Uma visão condicionada a certas coordenadas geográficas. 
Agora utiliza apenas os 23 graus de agudez visual máxima, sua zona focal. A zona mínima necessária para perceber o que está mais próximo: Eu. Tem alguma dúvida?
Ele digita a 9 caracteres por segundo enquanto olha por uma janela retroiluminada. Uma nova pesquisa. Toca em mim com suas mãos quentes enquanto escreve incontáveis palavras, que dariam cartas, que dariam poesias, que dariam livros. Minha memória está cheia, minha bateria viciada e ele a fazer swipe na tela como quem desvia de algo que vai ao seu encontro. 
Percebe o meu ponto, não percebe? Balance a cabeça. Fale.  
Somente eu sei que ele está cego. Mas o que defino por cegueira não é cegueira para ele. Mesmo que a luz do sol chegue aos seus olhos apenas pelo reflexo do vidro. Mesmo que o canto dos canários não soe mais alto que o som das notificações. Mesmo que sua coluna esteja envergada em reverência a mim. Não é o que é.
Mesmo que suba as escadas ofegante com uma mão no corrimão e outra a me segurar, que não corra ao ritmo das crianças, perdidas e realizadas. Mesmo que, ansioso, faminto, cansado, gaste tempo a me tocar antes de comer um pedaço de pão. Não. Não é cegueira para ele. 
Ainda me vê com perfeição. Está a espera de uma mensagem que nunca vem. Que não esteja a confundir minha passividade com indiferença. Ele tem medo de não me ver ou de não ver a si mesmo em mim. Já o ouvi falar isto. Eu não percebo como alguém que está a ficar gradualmente cego pode se preocupar comigo. Como se fosse eu parte de sua cura.
Eis um homem a se tornar máquina. Um homem a ver através de mim. A me permitir ser seus olhos. A achar que vê mais longe porque acha que vê mais coisas. A escrever incessantemente sem respostas e a procurar impacientemente por algo através de mim. 
Suas raízes nos olhos crescem, precisa dormir. 
Seus olhos agora tem 1% de bateria e precisam absurdamente de uma tomada.
Vrrrrr, Vrrrrrrr. 1 nova mensagem. 


Paulo Mariano B Oliveira
Dezembro, 2019


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Memórias

Prosopopeia (1.ª tentativa)
Já não me lembro como é que viemos aqui parar. Sei que não viemos pelo nosso pé. Ainda assim, quando cá chegámos o futuro prometia. Éramos novos, estávamos em forma e, sobretudo, tínhamo-nos um ao outro. 
Normalmente íamos sempre para o mesmo canto, mas ainda assim, dentro do panorama dos restantes dávamos um bocado nas vistas. Por isso, era a nós que nos escolhiam com mais frequência. 
Tentámos desde o princípio dar-nos bem com todos, mas nem sempre foi fácil. Quando chegámos percebemos que havia uma transparência entre todos que invejávamos, mas que a mim não me era nada natural. Nesse aspecto ela sentia-se mais em casa, estava mais habituada a este à vontade do que eu, que sempre fui mais opaco. Ainda assim, era uma convivência muito arrumada, cada um sabia o seu lugar, e ninguém se chateava.
Sempre que nos escolhiam a nós ficávamos entusiasmados, porque nos levavam sempre para sítios diferentes. Além disso, éramos muito bem tratados e normalmente escolhidos para os dias de festa. Assim, apesar de cansados, voltávamos sempre contentes e de cara lavada.
Mas a meia idade chega para todos e, às tantas começámos a ficar mais moles. Por isso, se no início nos faziam galgar quilómetros até ao trabalho, agora já não arriscavam tanto connosco e já não íamos muito longe.
Por esta altura, começámos também a perceber que nos calhava mais roupa velha. Ao princípio não nos importámos, até porque eram sempre coisas boas. Mas o desgaste também se começou a notar em nós. Sobretudo nela, que andava mais irritadiça e irrequieta. Começámos a discutir e notava-se: já não voltávamos tão unidos como dantes. 
Depois de um dia particularmente difícil, foi a gota de água: saltou-me a tampa. Como é transparente, não consegui perceber para onde foi – e os nossos donos também não. Nunca mais pegaram em mim. 

Se fosse de vidro como os outros ainda me poderiam reutilizar como pirex, mas a um tupperware sem tampa já pouca esperança lhe resta. Ainda por cima sou de plástico, portanto não tenho ilusões de algum dia vir a ser reciclado.
Inês Avelar, Outubro 2019.

Meu caro amigo


Carlos quedou-se estático ao terminar de ler a carta que recebeu nesse dia pelo correio, pousou-a, e ficou relaxado no sofá de couro que compunha o canto do escritório de sua casa. Olhava de lado para um candeeiro em cima da secretária de Mogno D. Maria e não pensava em nada. Dormitava acordado enquanto o cigarro que pousou no cinzeiro ardia lentamente, ao seu ritmo, deixando no ar o calor tépido do fumo e do silêncio. Devem ter-se passado algumas horas até que, por fim, tenha adormecido na mesma posição que ocupava desde que começou a recitar interiormente as palavras dilacerantes de Henry.
O dia seguinte começava como muitos outros. Carlos acordava (sempre) pelas sete e vinte-seis da manhã, e não esperava pelo despertador seguinte para se encaminhar calmamente para o seu duche de água bem fria que, como o próprio afirmava, “enrijecia os ossos”. Depois de se vestir, era hábito tomar o pequeno almoço, preparado metodicamente para que seguisse as regras essenciais de uma alimentação consciente e equilibrada: sumo de laranja natural, iogurte não-açucarado grego acompanhado de flocos de cevada, aveia, sementes de chia e linhaça, torrada de pão integral com mel e um café bem tirado da cafeteira moka italiana. Nesse dia, à medida que elaborava todos os passos da sua rotina, um pequeno pensamento, inquietante mas longínquo, ocupava a sua mente. Como se se tivesse esquecido de tomar uma nota importante no seu calendário que por muito que tentasse agora não conseguia recordar, o seu dia começava distante de si mesmo, sem a sua lei de bases fundamental.
O céu era de um cinzento particular quando saiu de casa para o emprego, alguns minutos atrasado em relação ao horário habitual. Das nove às dezassete era Carlos (ou pelo menos o próprio estava convencido ser) o membro dos quadros que salvava da ruína a multinacional norte-americana onde estava empregado. O seu gabinete era pequeno e organizado da forma mais eficiente possível, tendo em conta a enorme secretária que ocupava boa parte do espaço disponível. Nela repousavam dois monitores planos que lhe permitiam otimizar o seu método de trabalho em multitarefas. Não gostava de ser incomodado nas suas funções, sendo que nesse dia passou o seu tempo em chamadas internacionais por vídeo conferência, a tentar resolver as “besteiras!” cometidas pelos seus pares. As chamadas eram intervaladas pela contemplação melancólica da janela à sua direita, atenção desviada para os aviões do aeroporto local que aterravam e descolavam a aproximadamente cada três minutos. Gostava de imaginar e apostar para consigo mesmo para onde iriam todos esses aviões. Que necessidade teriam tantas mulheres, homens e até crianças de voar para outro lugar? Seriam negócios, visitas de família, ou simples caprichos de passar fins de semana num qualquer hotelzinho barato de uma cidade a duas horas de distância? Nunca encontrava respostas, ou sequer um fio lógico de pensamento, que o pudesse conduzir e ligar à vida destes desconhecidos sem rosto que voavam para trás e para a frente.
Era noite cerrada quando regressou a casa. Optou por voltar a pé. Ao entrar, pendurou o sobretudo no bengaleiro de carvalho atrás da porta de entrada. Espreitou pela janela do corredor e viu o seu jardim, onde crescia uma laranjeira imaculadamente aparada para não interferir com o espaço do quintal do vizinho, e suspirou. Suspirou com força suficiente para destronar o peso que carregava nos ombros, o peso que carregava num dia que pareciam vidas. Sorriu ao reparar uma última vez no perfeito formato da laranjeira e foi fazer o jantar. Nunca prescindia de preparar uma refeição completa e foi com satisfação que, de seguida, se sentou confortavelmente no seu sofá do escritório, para ouvir uns discos da sua coleção, acompanhados de cigarros e brandy. Depois de virar o primeiro disco, banda sonora original do filme Virgin Suicides protagonizada pela banda francesa Air, reparou que o escritório estava alumiado, mas não se recordava ter ligado o candeeiro da secretária à sua chegada. Ficou intrigado. Jurava tê-lo apagado nessa manhã, sabendo que não era seu sair sem verificar meticulosamente cada divisão. Embora não se tenha preocupado momentaneamente com o assunto, Carlos deixou-se depois levar por uma inquietude crescente que o perseguiu noite dentro por pesadelos confusos com barragens hidroelétricas e notícias de três jovens afogados num mergulho de verão.
Pela manhã do dia seguinte, o brandy ainda fazia das suas. A grande custo e correria conseguiu terminar a sua rotina matinal e chegar ao emprego às horas tabeladas. A meio da tarde uns colegas combinavam uma saída para uma cerveja depois do expediente, no entanto, o cansaço do dia exaustivo e a repulsa pelas habituais conversas de retrete levaram Carlos a rejeitar o convite. Desta vez, estava com pressa e apanhou um táxi para chegar a casa o quanto antes. Depois do jantar, e de volta ao predileto sofá de pele, pegou por impulso na carta que leu dias antes e que ainda repousava em cima da mesa de centro. Releu-a incontáveis vezes. A inquietude que o acompanhava desde então, tornou-se aflitiva. Sem se aperceber da perda de controlo e da perturbação crescente que lhe causava cada leitura, Carlos relia, petrificado, fumando cigarros acendidos uns pelos outros. Nas entrelinhas, indagava sobre o seu passado e futuro. Sobre o seu destino, ou a falta dele, a própria (in)utilidade da sua existência. Julgava-se a entrar num ponto de rutura quando se encaminhou mecanicamente para baixo do chuveiro, já aberto, esperando que a água gélida desse mais claridade aos seus pensamentos. Sem se secar, encaminhou-se para a quarto e enfiou-se debaixo das cobertas à procura de proteção contra um mal até aí desconhecido e invisível, trazido pela consciencialização da sua própria existência. Tremia e batia os dentes.
No dia seguinte Carlos não acordou às sete e vinte-seis. A noite foi repleta de pesadelos macabros e períodos de insónia que se alastraram durante horas. Deixando-se dormir finalmente pela manhã, não pensou em ir trabalhar e entregou-se ao ócio. Ao acordar por volta do meio dia, vestiu o seu robe de seda e dirigiu-se ao escritório. A carta encontrava-se em cima do sofá, onde não a tinha deixado na noite anterior. Soltou um grito estridente de incompreensão que não ressoou além da sua casa. Ninguém o conseguia ouvir, teve a confirmação de estar só neste mundo. Em desespero, correu para a cozinha tentando encontrar uma caixa de fósforos. No entanto, o fogo não pegava. Um a um, Carlos acendeu cada fósforo apenas para os ver consumir-se até lhe queimarem a ponta dos dedos deixando o papel amaldiçoado intacto e frio. Não perdeu tempo. Impregnado de raiva e ódio contra a sua própria razão, Carlos resolveu ir buscar a solução a outro elemento. Pegou no manuscrito já amarrotado na sua mão e correu porta fora em direção ao cabo no extremo ocidental da cidade. Quanto mais sentia o cheiro e o som do mar, mais galgava e acelerava para o seu destino num esforço sobre-humano. Imparável, fechou os olhos e cerrou a mão quando já não tinha terra debaixo dos pés e voou para o mar. Carlos foi encontrado horas depois já sem vida flutuando junto a um documento recolhido como prova a ser analisada pela Polícia Judiciaria, no meu departamento.
Decidi de imediato assumir a investigação do aparente suicídio de Carlos pelo mistério e envolvimento que se me apoderou ao ouvir o relato dos colegas incrédulos. Em poucas horas o caso tomou proporções gigantescas na minha vida e passou a ser a minha única prioridade. Por uma razão que desconheço, decidi violar as regras e levar a carta, e única prova, para minha casa. Tenho tido noites inquietas.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O Destino de Cada (Prosopopeia)


O destino de cada
      Taïs Reganelli
- Tem alguém aí? Ei!
Ouviu um burburinho, cochichos, mas ninguém respondeu. Em seguida, a porta foi trancada. Esperou muitas horas ali, estagnada, pensando no seu passado, naquilo que já tinha visto, mas não havia visto muito. Tinha apenas uma lembrança muito remota.
O tempo corria e ela, solitária, só percebia os dias passarem por causa do calor e da luz do sol que iam e vinham. Teias de aranha, poeira e a própria solidão começaram a se instalar e a incomodá-la.
Sou uma cadeira mal-amada, concluiu, derrotada. Não era velha, não estava quebrada e mal tinha começado sua vidinha proletária. Não entendia a razão.
Um dia, não sabia dizer quanto tempo depois, ouviu passos. Arregalou os olhos, ficou eufórica. Desta vez não chamou por ninguém; preferiu observar a situação. Ouviu a porta rangendo e descobriu que estava de costas para ela. A vida é mesmo muito injusta: finalmente tinha a chance de ver o que acontecia ao seu redor, mas não pôde se mexer, claro, era imóvel. Era um móvel. A língua também tem suas ironias...
Quisera ao menos ter tido a sorte de nascer balanço, ou uma dessas cadeiras de escritório, cheias de parafernália, rodinhas e o diabo-a-quatro. 
Mas não demorou e num vapt saiu voando pelas mãos de alguém. Ela não tardou a reclamar: - ai, me põe de volta no chão! Mas enquanto o seu destino não chegou, ninguém a soltou.  Os passos foram ficando mais lentos, ouviu uma conversa sobre onde ela deveria ficar e pronto, lá estava. Aquele seria o seu lugar. Antes disso, era apenas um não-lugar, um depósito, um almoxarifado de espera, um abandono premeditado e planejado.
Mal se instalou e já ouviu o “conversê” geral. Todas as suas colegas estavam eufóricas, conhecendo umas às outras, tentando descobrir qual era este novo lar. Já ela era tímida, preferiu ficar calada. Não era difícil perceber; havia um quadro negro, carteiras de estudantes, ou seja, ela e suas colegas já tinham um novo propósito de vida: acolher bundas de jovens estudantes, ou, para alguns, acolher rabos.
Pois bem, até aí não há novidade alguma, as cadeiras são feitas mesmo para isto: abrigar bundas. Toda cadeira acolhe bundas, mas há sempre uma apreensão em saber que tipo de bunda lá vai estar.
Nesta noite não conseguiu dormir, ficou muito ansiosa. Logo cedo, na manhã seguinte, ouviu o sinal e crianças entraram correndo na sala, cada qual escolhendo seus lugares. Ela queria mesmo era fazer amizade com a sua bunda. Triste seria abrigar nádegas duras, sem alegria de viver. Sentou nela um garoto de uns quinze anos e ela logo se afeiçoou a ele. Ele lhe fez companhia dia após dia e ela gostou particularmente de quando chegou o inverno, quando ele usava calças quentinhas que lhe aqueciam também. Havia dias de pura peraltice, os dias que precediam um jantar de sopa de feijão ou brócolis. Ela ria-se toda da fedentina que lhe invadia as madeiras. Dias ruins eram aqueles em que o moleque faltava à escola. Não acontecia com frequência, mas se sentia tão só…
Não se queixou, mas logo no primeiro dia sentiu uma beliscada forte. O miúdo tinha sempre agarrada ao bolso de trás direito uma chave muito pontiaguda. A chave da sua casa. Com o passar do tempo, foi se acostumando àquela dor. Era uma dor de amor, não era um grande problema.
Era um amor unilateral, claro, mas era bom, era amor.
A cada dia que passava, a chave passou a ferir cada vez mais a cadeira. Ela tentava alertá-lo, mas ele não entendia. Ela sofria e ele continuava a sua vida escolar sem dar importância àquilo que o mantinha sentado por horas e horas todos os dias.
O corte foi ficando profundo, o que alimentou a imaginação do adolescente. Já havia algum tempo, ele andava mal-educado, ingrato. Colava chicletes nela, riscava a tábua… Vendo a fenda que a chave tinha causado no tampo da cadeira, teve uma brilhante ideia. Pegou seu canivete, escondido, e começou a cortar deliberadamente toda superfície lisa encontrada. A cadeira foi tomada de uma profunda tristeza, não podia imaginar que justo ele, seu companheiro, lhe faria tanto mal.
Já extremamente deprimida e desejando virar lenha, viu acontecer uma inspeção no material escolar e em todo o estabelecimento de ensino, e que incluía toda a sala de aula. Era o fim do ano letivo. Após ter sido minuciosamente analisada, foi levada, lixada, pintada, consertada, reformada... A sua estrutura, que estava sendo decomposta, eram sua memória e personalidade, por isso, foi esquecendo a própria história. Esquecendo… esquecendo… Uma lixada, uma memória a menos, uma demão de tinta, uma história esquecida. Adormeceu.
Ouviu uns gritos abafados, estava zonza e confusa. Sentiu um solavanco. Alguns minutos depois, ouviu qualquer ordem dada, viu uma claridade e logo apagaram a luz.
- Tem alguém aí?

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Prosopopeia



Não sei onde começou a minha história. O que é desde sempre? 


Vamos começar pelo que possas conhecer, ou pelo que possas acreditar. 


Talvez tenha nascido de uma explosão, aquela grande explosão, e esteja ainda a acompanhar a sua expansão. Mas talvez essa explosão e essa expansão só aconteçam através de mim.


Eu estava lá quando as estrelas nasceram e quando queimavam vivamente. Estou lá quando explodem, ou quando a gravidade puxa as partículas para ela própria, crescendo para se tornar algo novo. Eu estarei lá a vê-las morrer e arrefecer. Quem sabe quando voltarão a queimar de novo?


Eu fui, sou ou serei, dependendo de como e quando olhares. Não consigo deixar de ser diferente dependendo da gravidade ou entendimento da situação. Talvez não seja eu que mudo, mas sim a percepção que os outros têm de mim, apesar de nunca me conseguirem ver. Por outros, quero dizer tu.


Tu tentaste medir-me através do sol e da lua, pelo passar das estações criadas pela inclinação natural do eixo de rotação da tua casa. Tu tentaste ver-me como areia e tentaste prender-me numa ampulheta, or como ponteiros num relógio, ou séries de zeros e uns. Tu usaste números e equações, na tentativa de me restringires a uma definição, de explicares a minha existência. Tu tentaste controlar-me e, de certa forma, sou eu quem mede e controla a tua vida, fazendo nada mais do que existir.


Posso ser gerido, de acordo com os teus próprios termos, mas nunca ninguém será capaz de me tocar e de me agarrar e de me virar, muito menos de compreender a minha existência. Alguns de vocês têm, ou tiveram, ideias belas ou tristes ou extasiantes sobre mim. Outros de vocês estiveram perto de chegar à superfície do meu ser.


No final, para ti, para vocês, não passo de relações com outras coisas.


Talvez seja um círculo interminável, mas nunca uma progressão de causa-efeito, como normalmente olhas para mim. Mas na verdade, tu não és mais do que um grão de areia num deserto sempre em expansão. 


Será que consegues viver sem mim? Será que algo consegue existir sem a minha interferência?


Sou imparável. Sou inevitável.


Não sei quando comecei. Ou talvez eu seja quando e quando seja desde e para sempre.


Link para o texto original:
“Inktober 2019 Day 23 — Ancient”  https://link.medium.com/sx2OffVen1


Ana Martins, Outubro 2019

A minhas Últimas Penas

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