Cabeça
Foi então que disseram que o meu problema era na cabeça cabeça cabeça.
Eu cá sentia-o algures entre a garganta estômago pernas, mas guardei essa
opinião para mim. Os doutores garantiram, primeiro um, depois o outro, em
seguida um terceiro, todos concordavam que sim, era na cabeça cabeça cabeça, eu
ainda olhei vagamente a minha imagem no espelho onde garganta estômago pernas
tinham o tipo de vibração do erro, mas eles, batas óculos narizes, acenaram com
as suas cabeças cabeças cabeças na direcção das suas importantes anotações e
não restaram dúvidas. Por causa do problema da cabeça, disseram, vou ter de
ficar aqui uns tempos. É para o meu próprio bem, dizem. Não sei se sou eu que
já não sei o que significam as palavras, ou se são eles que mentem, mas não acho
que tenham razão.
É uma dor assim disse eu primeiro a um e depois a outro e em seguida a
um terceiro, embora nem um, nem outro, nem um terceiro mo tivessem perguntado.
Assim como um limão e fiz por espremer um limão entre as minhas mãos para que
eles percebessem, primeiro um, depois outro e um terceiro, enfiei os dedos no
limão limão limão até arder arder arder, mas o meu marido não gostou. Fez assim
com a cabeça cabeça cabeça, deu um estalido com a língua língua língua e eu
parei, envergonhada. Os médicos vão cuidar bem de ti, querida. Mas os seus
olhos olhos olhos diziam outra coisa. Quando ficares melhor, vamos de férias.
Mas as suas mãos mãos mãos diziam outra coisa.
Fui levada em rodas, lavada em lágrimas que me vieram assim sem mais.
Despida, lavada, esfregada debaixo dos braços, esfregada entre as pernas,
esfregada até a minha pele ficar esticada esticada esticada em todas as minhas
extremidades. Fui vestida de um branco que cheirava a detergente de má
qualidade e deitada numa cama branca com lençóis brancos e por cima uma colcha
branca e abaixo o chão branco e mais acima o tecto branco e a toda a volta as
paredes brancas. Fiquei assim por muitos dias e eles garantiram que me ia
ajudar a limpar a cabeça cabeça cabeça.
Eu quis acreditar neles. Deixei-me ficar branca de branco no branco,
querendo muito que o problema fosse na cabeça cabeça cabeça e fosse fácil de
resolver, evitando pensar na garganta estômago pernas e à medida que os dias
passavam eu já só via tudo branco branco branco e esperava a absolvição.
Vieram os doutores, primeiro um, depois outro e um terceiro, como se
sente hoje, como se sente hoje, como se sente hoje e eu muito bem, oh tão bem,
cada vez melhor, e fizeram-me mais perguntas que eu não percebi e mostraram-me
imagens que não eram brancas mas vermelhas e eu disse-lhes que não gostava de
vermelho, que desde criança me causava aflição, que preferia ficar no meu
quarto branco, mas eles queriam que eu visse, eu fechei os olhos, pensei que me
ia dar uma coisa, eles disseram que o meu marido não ficaria satisfeito se eu
não melhorasse e eu disse-lhes que estava bem se não me mostrassem aquelas
coisas. Fizeram isto muitas vezes, primeiro um, depois o outro e ainda um
terceiro, vermelho vermelho vermelho, e um dia combinaram os três e ali estavam
juntos, trios de narizes óculos batas e todos acenaram com as cabeças cabeças
cabeças. Atrás deles, estava o meu marido.
Falaram-me então da operação.
Primeiro um. Que não era um procedimento invasivo. Depois o outro. Que
eu não ia sentir dor. E ainda um terceiro. Que ia recuperar rapidamente.
Bastava a operação e eu ia ficar boa, nem me ia reconhecer. Ia poder voltar
para casa e para o meu marido marido marido que sentia a minha falta falta
falta.
O meu marido sorria. Tinha um sorriso de lábios vermelhos.
Não não não, disse eu. Eu não queria ser operada à cabeça cabeça cabeça.
Até tinha dito ao meu marido e ele tinha prometido prometido prometido. Não
tinhas?
Querida, tu queres ficar boa, não é? Esta operação vai fazer com que
voltes ao que eras dantes, quando nos conhecemos. Não é por isso que estás
aqui? Os doutores garantem que esta pequena intervenção te vai fazer ficar bem.
Mas, claro, tu é que decides.
Disse aos doutores que tudo, podiam operar-me a tudo, mas à cabeça não
não não. Com certeza haveria outras operações, eles tinham estudado muito, com
certeza conheceriam alternativas. Eles sorriram. Primeiro um, depois outro e
ainda o terceiro. Só o faremos com o seu consentimento, claro.
O meu marido sorria. Tinha um sorriso de lábios vermelhos.
Foi então que me tiraram do meu quarto branco branco branco. Descobri
que havia mais como eu. Éramos todas mulheres. Ali não havia espelhos, mas
compreendi que não eram necessários. Tudo o que eu poderia ver num espelho via
nos rostos das outras outras outras. Não eram bem rostos, eram superfícies
lunares, matizes de pálido. Algumas eram balões balões balões cheios de ar. Em
todas elas eu via os meus olhos olhos olhos grandes vazios a olhar para mim mim
mim.
Até te ter visto a ti.
A tua cabeça.
Ao contrário das outras, era negra rapada límpida, uma pedra preciosa
polida.
Perguntei-me qual seria o teu problema porque não podia ser a cabeça.
Tinhas uma cabeça perfeita como um ovo negro de galinha e se eu tivesse uma
cabeça assim com certeza não estaria aqui. Olhaste para mim como se soubesses
quem eu era, o que pensava, para onde ia — tudo coisas que eu desconhecia sobre
mim — ergueste o queixo na minha direção.
E percebi, mesmo antes de dizeres, que o teu mal era a revolução.
E percebi, mesmo antes de me aperceber, que o meu mal eras tu.
Havia horas certas para a medicação. Aprendi contigo a fingir que tomava
o comprimido. Havia horas certas para olhar para o vazio. Aprendi contigo a
encher essas horas. Contaste-me sobre as outras. Disseste: Esta disse que não
ao marido. Aquela disse que sim, mas não foi ao marido. E essa esqueceu-se de
levantar a mesa. Esqueceu-se durante três meses. Era certo que limpava,
arrumava, cozinhava e punha a mesa, servia o jantar. Mas, no final, não
levantava a mesa. Já estás a ver o problema. E aquela conhece formas de evitar
uma gravidez. Muito útil.
Falavas com palavras que eu conhecia e entendia, embora me fossem
estranhas e todas novas, nunca usadas, nunca pensadas. Não te perguntei porque
estavas ali, mas acho que sabia. Ao longo dos dias fomos aproximando as
cadeiras, cada dia mais um bocadinho, cada dia mais perto e agora via a forma
dos teus ombros como asas de corvo mesmo debaixo da túnica branca e agora via a
linha do teu nariz a apontar para cima e para além e agora via os teus dedos
como garras compridas e agora recuperava ideias que havia esquecido, por
exemplo: qual é o sabor exacto da tua clavícula esquerda? E agora sentia tudo
na garganta no estômago nas pernas. E tu viraste para mim os teus olhos de
carvão, fogachos acesos.
Os nossos dias juntas foram os melhores da minha vida
Eram 9 da manhã, quando vieram os doutores para te levar. Um, depois
outro e ainda um terceiro, juntaram esforços em teu redor. Agitaste as tuas
asas de corvo, cravaste as tuas garras, lançaste um grito de morte. Todos se
assustaram. Tu ergueste a tua cabeça
cabeça cabeça. O teu sorriso era negro e feroz. Em rodas, força e muitos
braços, levaram-te. Eu vi tudo vermelho.
Já sabia que não serias tu, quando te voltasse a ver. Era a tua cabeça
cabeça cabeça, mas não eras tu. Mesmo assim, contei-te sobre a garganta e o
estômago e as pernas. Contei-te sobre o vermelho. Contei-te todas as coisas
para as quais me tinhas dado palavras. Tu não me entendias. Passado muito
tempo, quando eu já tinha perdido toda a esperança, falaste. Disseste na tua
voz, muito séria, de um só fôlego:
Parietal temporal frontal occipital esfenóide maxila zigomático lacrimal
nasal corneto inferior palatino vómer mandíbula?
Assim exactamente, com uma pequena inflexão para cima em tom de pergunta
no final.
Os teus olhos eram aflitos. Esperavas a minha resposta, as minhas
palavras que te salvariam. Peguei na tua mão.
Nesse mesmo dia, chamei os doutores e eles vieram, primeiro um, depois o
outro e ainda o terceiro e disse-lhes que estava pronta. Eles ficaram muito
contentes. Marcaram a operação para amanhã, às seis da tarde.
Inês Rôlo, setembro 2019
Agachada atrás de uma árvore, entre as grossas raízes que encaracolavam por cima da terra, o seu coração martelava contra o peito e o sabor a sangue chegava-lhe a boca. Havia estado a correr, escondida pelas sombras dançantes, movida pela adrenalina a bombear o corpo.
ResponderEliminar“Que péssima ideia. Não devia ter fugido.” Pensou, mas logo se lembrou, primeiro do cheiro do detergente de má qualidade, depois do quarto branco, das batas, óculos e narizes, e, por fim, das imagens vermelhas.
Nos últimos tempos, eles andavam a seguir os seus passos, de olhos postos nos seus movimentos. Ela fora libertada. Os doutores haviam consertado o que estava anteriormente partido, fora curada das suas doenças. Estava nova, outra vez. No entanto, era tarde demais quando se aperceberam que algo tinha dado errado no tratamento.
No início, tudo correu como em todas as outras mulheres, até que os sonhos começaram a trazer ao de cima memórias que deveriam ter sido apagadas. Quando se apercebeu que não se tratavam de sonhos, fez de conta de que nada se passava. O marido estava satisfeito com o tratamento. Mas com o passar do tempo e com o peso da verdade, deixou de conseguir fingir, até o marido perceber que algo estava errado de novo. O encanto desapareceu, ela acabou por fugir e, naquele momento, estavam a procurá-la.
“Estão sempre a ver e encontram-te sempre.”
Antes que conseguisse recuperar o fôlego, ouviu o estalar de um ramo. O sangue congelou nas veias e susteve a respiração. Cerrou os punhos suados e lançou o olhar da esquerda para a direita, e de volta para a esquerda. Não conseguia deixar de manter os olhos abertos, com as pupilas dilatadas, a observar o mínimo movimento à sua volta. Reprimiu um arrepio quando o estômago revirou. O coração saltou à garganta apertada. As pernas tremeram, mas não se atreveu a mexer-se.
Sabia que se voltasse, o tratamento não seria o suficiente. Sabia que se voltasse, a operação era a única saída possível. Sabia que se voltasse, não voltariam a errar e as memórias ficariam perdidas. Sabia que se voltasse, deixaria de ser ela própria. Ainda se lembrava do olhar vazio das outras mulheres, de como voltavam, iguais por fora mas vazias por dentro.
Foi quando sentiu algo à sua esquerda. Cravou as unhas nas palmas da mãos, fazendo escorrer um fio sangue. Devagar, virou o olhar para encontrar a presença. Os olhos arregalaram. A boca abriu-se num grito mudo.
“Apanharam-me.”