Leonardo Lacerda
O homem imaginou que devia haver restos do tempero das carnes do almoço em suas mãos, pois, ao pé do riacho em que iniciava a digestão, num movimento único, um disforme lagarto lhe abocanhou a mão direita e a ela ficou pendurado. Ele espirituosamente se questionou se estes seres eram carnívoros, enquanto observava assustado o tronco do bicho. Seria possível que se tratasse de um filhote de dragão-de-komodo, ou quem sabe de alguns daqueles répteis que vivem nas sujeiras dos canais que cruzam Bangkok, aqueles que surgem sob as bases das palafitas, entre as correntezas das águas cinzas, com extensas línguas bifurcadas que cumprimentam os turistas que por ali passam. Não é necessária agora a definição, mesmo porque dela não se desvincula a caracterização geográfica, aqui inútil, basta imaginar que, dali em diante, eram o homem e o lagarto uma coisa só, o menor dos dois sendo grande o suficiente para abocanhar a mão do maior, mas pequeno de forma que não se arrastava pelo chão.
O homem não admitiria, e eu não chegaria à ousadia de certas revelações, mas é possível que se tenha levado à beira do riacho para digerir um pouco mais do que apenas as carnes do almoço. Alguns diriam ser ideias da ordem das que se devem discutir num divã, relatar àquela pessoa:
— Estive pela última hora e meia agachado entre as pedras, gritando com as paredes do ar e com os tetos do riacho. “Estúpido! Estúpido! Estúpido!”, eu lhes dizia, em tom informal.
O profissional da mente bem poderia fazer observações clínicas relevantes, mas o homem, antes de todas as pretensões que já surgirão, é ainda só o que é, sendo, portanto, vetor da terrível mania nossa de ignorar a sensatez que nos é direcionada, ao passo em que sandices e insultos agarram-se à mente, quando não ao coração. Claro, isso se rodopiássemos o homem e o fizéssemos estar, concomitantemente, ali, cá, acolá, etc. Entretanto, por ora, na verdade, um pouco antes da chegada do lagarto, era só um ser humano patético gritando na natureza, desejando renunciar àquilo que entendia definir sua existência, enquanto estava, quem diria, existindo de fato, ou apenas digerindo as carnes do almoço.
Sabia que a volta a casa tomaria ares de confronto enfadonhos. Já era cansativo o suficiente arrastar-se por aí, da casa à mata, da mata ao riacho e de volta, isso quando era o próprio que vinha andando, pois, sendo a vez dos outros que ele insistia em criar, poderia ser do quarto ao balão, do balão à galeria, da galeria aos infernos de diferentes religiões, das religiões à morte, embora nenhuma dessas transições parecesse a ele mesmo digna de nota alheia. De toda forma, não apenas isso definia a problemática da volta a casa, era também a antecipação da conversa que teria ao esbarrar com ela, pela janela da cozinha para o jardim, conversa que provavelmente se confirmou:
— Olha o que me aconteceu — ele teria dito, expondo o óbvio.
— Tens um lagarto preso à mão — ela teria respondido, ainda a descascar cebolas, já a janta em mente, mal levantando os olhos, com a perna esquerda estendida e a direita sobre ela dobrada, formando um quatro.
— Pois bem. Não é assustador?
— Quem mandou te enfiares mata adentro?
— Que faço eu agora?
— Pensas que não sei o que lá fazes? — ela disse, com olhos menos agressivos do que piedosos.
— E que faço eu agora?
— Já experimentou dar-lhe umas porradas bem dadas?
— Tenho pena do bicho — ele disse, afastando a mão do corpo o máximo possível.
— Dá-lhe um tempo. Se pela mandíbula ele veio, pela mandíbula eventualmente se despede — ela preconizou.
O homem subiu as escadas cabisbaixo. Tudo era ultimamente um borrão, um fracasso desconexo, e isto ainda com ambas as mãos livres, cada tentativa de uma frase de impacto era uma visualização da própria limitação, cada esperança de um roubo bem executado se desfazia numa espécie de ventriloquia rouca, e agora o maldito candidatinho a crocodilo fincado em alguma camada da pele que soasse razoável o suficiente para que ele estivesse incomodado, mas não gritasse de dor em nossas orelhas, entalado quase até o punho. Fez a curva do topo da escada para o quarto, passando pela enorme estante de livros do corredor. Perguntou-se se o lagarto teria o desejo de buscar uma outra passagem, subitamente mergulhar em alguma referência, como quem para no posto de gasolina e exibe sinais de desconexão mental, perguntando, sem apontar: “É por aqui que vai para lá?”, ora, onde é que é aqui, e, ainda bem pior, qual é o lá a que se pretende chegar?
Sentou-se à mesa para tentar trabalhar. Não demorou muito para que, desde a cozinha, pudesse-se ouvir com clareza os seus gritos de repúdio, três vezes seguidas o termo estúpido, ou talvez fosse nojento, imbecil, qualquer coisa que povoasse a ojeriza que sentia. Ela rapidamente apareceu ao pé da porta do quarto para tentar acudi-lo:
— Vê só: como é que bato à máquina? — ele disse, aplicando pancadas cegas às letras com o corpo do lagarto, que ignorava o gesto.
— E por que é que tens com tanta certeza que escrever? — ela disse, aproximando-se dele e abraçando seu pescoço por trás. — Bem mereces um descanso.
— Como é? — ele perguntou, chacoalhando o bicho e afastando a mulher.
— Digo — ela respondeu, voltando à porta —, é mesmo necessário que leves tudo ao papel? Não basta que as histórias existam em tua cabeça?
— O problema é que é outra coisa que em minha cabeça existe, outra coisa que não as histórias.
— E bem pensando: cuspir as palavras não é separar-se delas?
— De quem?
— Das palavras.
O homem estava mudo, dedicava ao réptil olhares curiosos. Começava a sentir certo envolvimento com o animal, quase como se considerasse lhe disponibilizar uns metros quadrados sem aluguel, depois que finalmente se separassem. A mulher prosseguia:
— E, por conseguinte, das histórias. E eu imaginaria que delas, palavras e histórias, tu não quisesses nenhuma separação. Pois são o que dizes ser tua razão de dormir e acordar.
— O problema — ele disse, como se explicasse algo óbvio a uma criança tenaz. — O problema é que o que existe em minha cabeça, repito, não é o que vem a existir no papel. Nunca é, nunca será, e não posso me satisfazer só com a primeira parte. É tão somente essa tentativa de equalização que dá sentido à escrita. Se tudo o que penso fosse tudo o que escrevo, não creio que seria feliz.
— E hoje és?
— O quê?
— Feliz.
— Não sei, mas ao menos escrevo. Ou escrevia — disse, oferecendo agora um olhar de lamento ao lagarto. — E o que escrevo difere do que penso. É nesse instante que me junto às palavras, finalmente. Recordo-me, então, de que talvez tenha havido mesmo um instante em que as avistei, quem sabe as tenha tentado engravatar, fazê-las todas num enorme matrimônio, dominá-las. Entretanto, creio que se neguem a tais esforços. E passam depois por mim como um vizinho de um prédio de quinze andares, com seis apartamentos por andar, passa pelo outro na rua.
— Não são tua posse, portanto?
— Assim nunca foi.
— E o que diabos é então que tens no quengo? — ela disse, impaciente, secando o suor da testa com um pano de prato.
— Ideias.
— Estas de nada valem?
— Paradas, são tão úteis quanto uma mão direita sob a posse de um lagarto. E se depender deste — disse, apontando com a canhota o réptil —, passarei meus dias a comer e dormir e a masturbar-me de mão trocada.
Ela deteve-se alguns segundos a refletir à porta. Virando-se de costas ao homem, proferiu, meio cortada pela sombra do corredor:
— Eventualmente, a fome dá cabo disso. Não te preocupes.
Ele aguardou o desaparecimento da imagem dela para responder apenas com um restinho de ar da inspiração anterior:
— Se não morro eu primeiro.
E se morro, deve ter pensado, não fica célebre frase alguma, nem para a lápide nem para eternidade do morto, até porque já se sabe bem que os grandes executam seus planos durante a existência, deixando ao leito de morte curtas e aparentemente inexpressivas falas. Não é de se chocar, o gênio diz em uma linha o que ao sonhador lhe custam quatro laudas, haja visto o esforço aqui em dar vida ao lagarto, este que não pode falar por si e a quem até agora não se chamou por sinônimos mais específicos como aipim, calango, teju ou teiú, tudo isso dependendo do fuso-horário de quem lê. Mas aqui mesmo me engano, não se trata de genialidade no puro sentido, posto que ela não existe sozinha, dir-se-ia mais ser algo como ourivesaria ou um desejo de morte constante.
Resignado, admirando os últimos detalhes do dia pela janela atrás da máquina, o homem sentiu o corpo mole e chegou a questionar se era sua a preguiça, ou se o lagarto é que sentia vontade de descansar. Reclinou a cadeira com os pés na mesa, bocejando feiamente, como costumamos fazer nós de mãos livres quando estamos sozinhos.
No meio do bocejo, deu-se pela sua imagem no espelho de madeira à direita, a poucos metros de si: quanto tempo levaria para que o lagarto finalmente decidisse lhe arrancar fora as carnes da mão, ou para que morresse de inanição? Riu da tola empreitada do bicho. O que quer que objetivasse, parecia deveras distante do ponto final, ali, inerte, agora de aparência inocente. Ele, por outro lado, haveria de encontrar saída: que escrevesse apenas com a esquerda, à máquina, à mão. Que aguardasse mesmo a morte do outro. Que ditasse para a companheira na sala ou na cozinha, embora não tivesse paciência para sua relutância à arte. Que saísse a gritar pela mata novos parágrafos, a ver se de fato aquela teoria das palavras como fração fundamental das repartições públicas da humanidade se manifestava, há quem diga que elas são como fiapos universais de imaginação, à espera de quem as alugue e encha os pulmões para dizer que tomará o mundo de assalto, a exemplo da vida que nos toma da barriga um dia. Então, alguém na Romênia captaria e traduziria aquele material e o levaria a público, apesar de que sempre haveria alguém para dizer que as ideias lá e cá sempre estiveram e a todos pertenceram, o que fez o romeno foi apenas despertar algumas. Azar do romeno ter de ouvir ofensas gratuitas, mas desejamos que estas sejam muitas, pois basta um único e primeiro leitor para reconhecer a distância entre o que o escritor é e o que pensa ser, portanto, enterrando pais e filhos, mas a fala vinda de múltiplos cantos deve significar que a obra anda a ser lida, ao menos vista, por aí. O homem, gritando pela mata, além desta primeira vantagem já citada, poderia criar, ler-se e reler-se em voz alta, já a testar o quão orgânicos eram seus diálogos e seus ritmos, se tivesse boa memória. Tudo isso torcendo para não esbarrar com outros lagartos, ou entendendo que justamente essa nudez fosse o repelente certeiro.
Sóbrio, ajeitou-se na cadeira, trazendo-a de volta à posição normal, o tronco ereto sentado ao limite do assento. Atento aos movimentos entregues pelo espelho, colocava-se o máximo de perfil possível para ainda enxergar seu reflexo de soslaio, a realizar cálculos matemáticos e previsões morais, a mão direita paralela ao solo e próxima à bochecha direita, as dimensões do lagarto, após um conto inteiro, finalmente se fazendo contábeis, algo como uma ou duas e mais um pouco cabeças de um cidadão de estatura média.
Olhando nos olhos do réptil, o homem enfiou a cabeça do lagarto na boca e aplicou-lhe os caninos na couraça. Tinha agora a boca tapada, o lagarto agitando o corpo como podia, dois rios de saliva ou sangue escorrendo pelos cantos do rosto. O gosto não era simpático, mas o homem poderia jurar que, jogado numa grelha, o animal possivelmente teria gosto de frango. Curioso que já o tenham dito também, embora a respeito de outra espécie, seres humanos que se viram canibais em cordilheiras abandonadas, tocadas apenas pelo descanso de cada um novo floco de neve.
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ResponderEliminarA noite caiu e ele sentia-se um pouco indisposto, talvez fosse efeito da carne de lagarto, comida assim crua e viva, a que não estava habituado. Deitou-se, adormeceu rapidamente e, no dia seguinte, sentia-se bem quando acordou. A tranquilidade durou, porém, uns minutos. Os gritos na casa ecoaram pouco depois. Primeiro, foi a mulher que desatou a berrar e a correr, entrando no quarto num pé e saindo esbaforida no outro. Depois foi a vez de ele se ver ao espelho. O susto que foi. Sentiu falta de ar, não conseguia respirar, abria e fechava os olhos, andava aos círculos pelo quarto, a cauda desajeitada a deitar abaixo os móveis, até soltar também um tenebroso grito. Um berro de lagarto gigante, de crocodilo talvez. Depois de ter comido o lagarto, tinha-se transformado, durante a noite, num. Mas num enorme, era uma espécie de crocodilo, um bicho nunca visto. Conseguia falar, não conseguia chorar, tinha mantido a razão, o juízo, mas sentia, ao mesmo tempo, uns estranhos instintos. Nos meses que se seguiram, pedia à mulher que lhe deixasse a comida, pratos generosos de carne, à porta do quarto, e que fugisse a sete pés porque, sabia-o, poderia comê-la. Foi uma altura difícil aquela em que a transformação durou, mas também a mais frutífera época deste escritor. Nunca mais voltou à mata, embora os desejos de rio fossem imensos. Passava os dias fechado no quarto a escrever e a sonhar com carne humana. Alimentava a imaginação de sangue e de gente e batia ferozmente as teclas da máquina. Escreveu um romance de 1043 páginas. Foi premiado, distinguido, quiseram dar-lhe medalhas, condecorações, mas ele nunca aparecia nas cerimónias. O mistério crescia. Quem é este escritor? Os jornalistas rodeavam a casa, todos queriam uma palavra, uma frase do autor, mas um crocodilo não podia dar entrevistas. Pelo menos na vida real. Escondido atrás da janela em casa, na penumbra, o escritor via o frenesim da imprensa no seu jardim e enchia-se de pena por não poder viver a sua própria vaidade. Possuído por uma fúria primária, juraria que, antes que o feitiço passasse, haveria de devorar todos os repórteres que por ali rondavam.
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