Murilo preparou a cama, dispôs as
almofadas de forma a não cansar o pescoço, uma seria para a nuca, outra para as
costas e ainda uma terceira ao fundo do colchão, para levantar os pés. Das 648
páginas do livro já tinha lido 57.
Lia devagar, soletrando diálogos,
voltando atrás para ver melhor, nunca se esquecia de letras ou linhas, deixava
que cada imagem se instalasse debaixo dos olhos. Às vezes, até os fechava para
ver melhor o que estava a ler. Murilo tinha levantado a persiana, deixado
aberta a cortina. Gostava que os barulhos da rua entrassem no livro, o camião
do lixo à noite, as vozes no passeio, os carros que pareciam rajadas de vento a
abanar a casa.
Nos últimos meses, nada o fazia
sentir-se tão vivo como ler. Nunca tinha experimentado antes. Foi conselho do
médico no centro de saúde, por causa das insónias, dos pesadelos.
– Sr. Murilo, em vez de ver
televisão, leia um livro. Vai ver que o sono vem.
Murilo experimentou. Gostou, os
pesadelos abrandaram, mas o sono não vinha na mesma, ou vinha em passos lentos,
como quem chega de longe e se atira para a cama vestido, cansado e confuso.
Murilo metia-se pelas páginas adentro e, às vezes, só acordava já a madrugada
ia alta, com a cara enfiada no meio das letras e a saliva a manchar as letras.
Hoje sentia-se, porém, tranquilo.
Encostou-se às almofadas. Abriu o livro na página marcada, ajeitou as costas,
amarfanhando as fronhas até ficarem com a forma do corpo, e começou a ler.
Aquele era o maior livro em que alguma vez tinha pegado. Murilo queria ver se
teria mãos, respiração, fôlego para tantas noites de leitura.
Em 57 páginas, já tinha conhecido
Helena, o seu amante Aires e ainda o empregado do café onde as duas personagens
iam todos os dias. Era engraçado, porque era muito parecido com o café onde o
próprio Murilo ia. O narrador nunca disse como se chamava, mas Murilo via
semelhanças em cada descrição.
Era pouco iluminado, tinha um
balcão de madeira e umas cadeiras, forradas por um plástico amarelo, que giravam.
O tecto tinha vitrais. Murilo não parava de pensar nestas coincidências. Hoje saberia
mais, com certeza. Mergulharia um pouco mais nas páginas do livro.
Murilo leu naquela noite, leu na
seguinte e na outra, e em várias noites que se seguiram. Mas, quanto mais lia,
mais perguntas tinha. Havia buracos que o livro não preenchia, dúvidas que
gostava de ver esclarecidas. As inquietações eram tantas que Murilo temia que
as insónias voltassem.
Já sabia como era o café onde
Helena e Aires iam, embora continuasse sem saber como se chamava – isso
dissiparia as dúvidas sobre se seria, de facto, o mesmo que Murilo frequentava.
Murilo esforçava-se como leitor, empenhava-se, já conseguia imaginar a rua, o
bairro de Helena e de Aires. E, mais uma vez, conseguia ver a sua própria rua e
o seu próprio bairro naquelas páginas.
Mas o narrador continuava a
esconder-lhe muito, demasiado. Não sabia a que horas é que Helena acordava, não
sabia o que fazia Helena todas as noites, pelo menos naquelas em que não estava
com Aires, não sabia se lia, se via séries, se tomava banho de chuveiro ou de
imersão, não sabia como era o pijama de Helena, o que comia ao almoço, não
sabia como caminhava na rua, Murilo imaginava-a de cabeça baixa e apressada,
mas o narrador nunca lho tinha dito directamente. Murilo sentia-se ansioso com estas
ausências. Não gostava de silêncios. O silêncio nunca o deixou dormir bem.
Resolveu, então, deitar mãos à
obra. Numa das noites compridas, encostado nas suas almofadas para a nuca e
para as costas, decidiu que, durante o dia, iria procurar Helena e Aires pelas
ruas. Helena, sobretudo Helena, era ela quem lhe interessava mais. Mas, talvez,
se visse Aires no café ou na padaria, e o seguisse, conseguisse chegar a
Helena. Afinal, o médico do centro de saúde também lhe tinha dito que andasse a
pé, que deambulasse pela cidade durante o dia, que isso o ajudaria com as
insónias e os pesadelos. Amanhã mesmo meter-se-ia a caminho. A cidade não era
assim tão grande. Helena tinha de estar em algum sítio.
Nas manhãs que se seguiram, Murilo
vagueou pelas ruas. Dobrou esquinas, apanhou o metro, estudou percursos de
autocarro, entrou em lojas, em livrarias, pegou num livro de poesia, nunca
tinha lido nada assim. Gostaria Helena de versos como aqueles? Sem dinheiro
para comer em restaurantes, ficou-se pelas esplanadas, pelos cafés, pelos
passeios, pelos degraus. Viu gente a passar, gente com pressa, gente sem
pressa, gente com filhos pela mão, gente que mal consegue andar, gente com
olheiras como as dele.
À noite lia, de manhã vagueava
pelas ruas à procura das personagens que lia. À procura de uma, uma só. Murilo
tinha de conhecê-la. Onde estará Helena? Onde estará neste preciso minuto em
que Murilo pensa nela? O que estará a fazer? Murilo via-a em todo o lado, em
todas as páginas do livro, em todas as imagens que lhe cresciam na cabeça,
Murilo achava que a vislumbrava numa ruela, o coração parava-lhe de repente,
mas logo voltava a respirar, sabia que eram as noites mal dormidas a alimentar
visões.
Naquela manhã, Murilo entrou numa
biblioteca, estava frio na rua. Tantos livros, tantas estantes. Podia passar os
próximos anos a ler. O que diria o médico? E se lesse tanto ao ponto de nunca
mais dormir? Murilo já não sabia como se sentia mais próximo de Helena, se quando
a lia à noite, se quando pensava nela de manhã. A receita do médico, que
parecia estar a funcionar no início, estava afinal a enlouquecê-lo ainda mais.
Já não distinguia o que lia do que imaginava, o dia todo parecia uma noite mal
dormida.
Foi naquela manhã de frio em que
entrou na biblioteca que Murilo a viu. Era ela. Não havia dúvidas. O
sobressalto de encontrá-la, de reconhecer a franja curta, o cabelo tão loiro
que era quase branco, as mãos pequenas como as de uma criança, uma falha quase
imperceptível entre os dentes. Helena tinha uma falha quase imperceptível entre
os dentes e ele não sabia. Só agora que a via, em carne e osso, percebia. Os
pormenores que um livro não conta.
Murilo seguiu-a, anotou o livro
que escolheu para ler. Helena gostava de ler, Murilo também só agora sabia
isso. Seguiu-a até à paragem de autocarro, decorou cada passo do caminho, o
número da porta em que entrou, o andar em que ficava a janela que se iluminou. Não
poderia abordá-la já, isso iria assustá-la. Teria de se explicar e Helena
poderia nem saber que era uma personagem do livro que ele estava a ler.
Precisava de ter calma.
Nessa noite, foi para casa a
correr, tinha de ler o máximo que conseguisse à noite. Queria saber tudo sobre
Helena. Leu sôfrego e, no dia seguinte, foi novamente sôfrego ver Helena sair
de casa. Lia à noite e, de manhã, corria para vê-la. Chegava desarranjado,
desalinhado, embrulhado em névoas e horas, mas sempre a tempo de a ver abrir a
porta e sair solar e limpa para o dia. Murilo seguia-a até ao trabalho, fixava
cada peça de roupa que usava, procurava nas traseiras do prédio o estendal de
Helena. Não lhe queria fazer mal, só queria conhecê-la. Quem é Helena? Aquela
que vê à noite, nas páginas do livro, ou a que persegue todo o dia?
Aires era insuportável. Era
insuportável no livro e era insuportável quando chegava, dia sim, dia não, a
casa de Helena. Era insuportável vê-lo tocar à campainha, vê-lo fechar a porta,
imaginá-lo a subir as escadas, imaginar Helena a recebê-lo solar e limpa.
Imaginar era insuportável. Murilo tinha de fazer algo novamente, antes que a
história avançasse e acabasse, antes que Helena se visse irremediavelmente
presa àquele homem. Era insuportável.
Nessa noite, Murilo foi para casa
e leu o livro até ao fim, de um só fôlego, sem respirar, sem pensar, sem
dormir, os olhos esbugalhados, as almofadas tortas, as dores no pescoço, os
músculos contraídos pela tensão, a impotência perante o desenlace. Tudo era
insuportável. As insónias feriam-lhe a cabeça e os olhos, agudas e negras.
Murilo fechou o livro. Que fazer? Como ajudar Helena a livrar-se do que a
esperava? Passou-lhe pela cabeça matar o autor da obra, mas isso de pouco
serviria, a obra já estava escrita, o mal já estava feito. Mas Murilo tinha um
plano.
Murilo tinha um plano e executou-o
na perfeição. Foi tão perfeito que todos se interessaram por ele. Veio nas
notícias de todo o mundo. Os jornais escreviam sobre Murilo, estavam intrigados
ou fascinados com o que a polícia tinha encontrado em casa deste homem: dezenas
de exemplares do mesmo livro, alguns rasgados, outros com páginas queimadas. Em
poucos dias, Murilo Inácio, 57 anos, tinha encomendado a mesma obra em todas as
livrarias e em todos os sites em que
tropeçou, tinha-a requisitado em todas as bibliotecas. E tinha-lhes esfaqueado
páginas e páginas.
Murilo Inácio, 57 anos,
desempregado, que enfrentava dívidas e problemas judiciais, aparecia em todas
as capas de jornais. Não tinha esfaqueado só páginas e personagens. Tinha
esfaqueado também uma mulher que se chamava Helena Teodósio, que tinha acabado
de chegar à cidade, e um homem, Aires Moniz, que estava com ela em casa nessa
noite. Os contornos do crime são ainda pouco claros. O julgamento prossegue. O médico
que receitou a Murilo Inácio leituras para tratar insónias é chamado hoje a depor.
Maria João Lopes
Todas as noites, Helena espera a morte. Prepara a cama, dispõe as almofadas de forma a não cansar o pescoço, uma para a nuca, outra para as costas e ainda uma terceira ao fundo do colchão, para levantar os pés. Atenta na figura de Aires a seu lado. Já dorme, sem preocupações. Tão perto do fim, Helena tem a impressão de quase o amar. Se tiver sorte, será a última vez que ensaia este pensamento.
ResponderEliminarTinha encontrado o livro por acaso, como todas as coisas que importam. Nessa altura, Helena só acreditava no concreto, por isso não consegue explicar muito bem o que aconteceu a seguir. Precisava de desaparecer. Não por uns tempos, não numas férias, não para outro país, nem através de uma baixa psiquiátrica, nada disso, as soluções habituais não lhe serviam. O tipo de desaparecimento que procurava era o permanente, o último. No entanto, Helena não era pessoa de se matar. Era contra o suicídio, por princípio. Mesmo a palavra não lhe agradava. Demasiado sibilante. Achava de mau gosto todos os seus eufemismos. Tirar a própria vida. Não pretendia ser recordada nesses termos. Era uma poesia que lhe provocava uma estranha mistura de vertigens e claustrofobia.
(continua)
Inês Rôlo
Abrira o livro ainda nesse mesmo acaso, sem nada procurar mas imediatamente encontrando. Ali, naquelas páginas, havia espaço para ela, sem dúvida. Naquele enredo havia lugar à Helena que ela era, mais ainda, havia precisão de uma Helena desse género. Entre duas linhas, interpôs-se. Não se pode dizer que tenha sido fácil. A textura do papel deu-lhe batalha, as vozes das outras personagens lá se fizeram ouvir, olha-me esta quem é que pensa que é, vê mas é se te metes numa história tua, e ela lá se aguentou, com toda a determinação, pois nada mais tinha. Arrumou-se, quieta, depois da vírgula, mas bem acima do diálogo - pareceu-lhe melhor. Mesmo assim, a vida no papel era bem diferente do que Helena imaginara. Sentia-se pressionada pelas letras vizinhas, atormentada pela violência da acção, interpelada às tantas a propósito do enredo que não conhecia bem. Mentiras, volte-faces, coisas do arco-da-velha. Inquietou-se bastante a dada altura porque tudo aquilo lhe soava demasiado familiar, como a vida, e ela não estava para isso. A páginas tantas entrou num café de esquina e meteu conversa com um tal de Aires. O homem não fazia sequer o seu género, mas dava-lhe jeito para ver se conseguia implementar-se melhor na história, conhecer as pessoas certas, enfim, fazer contactos. A ideia dela era ambientar-se, apanhar uma aberta para meter a sua deixa, mas sem se aperceber como, deu por si no centro. Daí para à frente, foi um desespero. Era a pontuação apostada em dar cabo dela, era o enredo implacável a gritar acção acção acção, analepse, prolepse, linhas de tempo trocadas. Nem um diálogo à vista, nem sequer um monólogo interior. Helena era a personagem principal, mas nada dizia. Era descrita da cabeça aos pés, desejada, imortalizada e até, uma vez, objecto de elegia. Percebeu da pior forma que já não conseguia sair, eram as unhas a arranhar o papel áspero, era o embate com a crueza das margens. À medida que o tempo passava, ocorreu-lhe que talvez não houvesse em si fundo suficiente para tantas leituras. Tentou gritar a partir das linhas narrativas, correr muito depressa e atirar-se, despenhar-se para fora dali, voltava sempre ao centro e a história avançava. Percebeu que a sua única hipótese era deixar uma mensagem em código na única linha de diálogo que lhe coube:
ResponderEliminar"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Enigmático, é certo. Mas Helena tinha esperança. O leitor certo ia entender e fazer o que tinha de ser feito. Fora o mais clara que podia ser, sem que os outros se apercebessem, Aires, todos aqueles parágrafos, os pontos e vírgulas que se sucediam no capítulo 23, a pressão atmosférica, as personagens secundárias com nomes invulgares como Efigénia, Teodora. Só lhe restava esperar. Ela era sangue e corpo naquele livro, ela era cabelo e unhas e fluídos diversos, tudo isto seco e plasmado na página, mas ainda assim vivo, dissecado a cada leitura.
Helena recosta-se nas almofadas. Imagina ouvir passos no outro lado da porta. Sente o soalho abaular, as paredes tensas, uma inspiração funda, a casa toda à espera.
(fim)
Inês Rôlo
Helena Teodósio estava morta na vida, no livro, mas não na mente de V. que dedicara noites a escrever-lhe a silhueta, o gesto, a respiração, o perfume, o nome –Helena—agora meio magoado, meio apagado, quase morto. Quase morto mas resiliente e nem se Murilo tentasse apagá-lo conseguiria apagar do alfabeto o H, o E, o L, o N, o A.
ResponderEliminarSecretamente, V. preparava-se para fazer Helena renascer, não já solar mas tremenda. Morena, desta vez, ou talvez ruiva…sim, ruiva. Uma ruiva fatal, uma ruiva-sangue.
A caminho do tribunal, o Dr. Guerra e o seu pesado andar nervoso encontraram uns saltos negros de verniz, uns tornozelos esguios, uns collants negros de vidro a realçar as linhas sinuosas de uma elegância desconcertante que culminava, magnética, no cabelo fulvo.
Se encarasse esta mulher, pensou o Dr. Guerra, certamente não sobreviveria para depor em sua defesa perante a loucura assassina desse tal Murilo.
Seguiu-a, no entanto, não pôde evitar. Viu-a parar diante de uma porta verde, pesada, de madeira e ferro trabalhado. Viu-a abrir a porta e subir umas escadas estreitas, escuras e gastas. Ao cimo, uma cortina de veludo entreaberta. Entrou, mas a divisão mal iluminada parecia não ter ninguém. Nada para além de um aparo e um tinteiro abandonados junto do que pareciam ser papéis abandonados.
Abeirou-se da escrivaninha. Podia sentir o perfume daquela mulher, o aroma do enigma. Distinguindo vagamente no breu um corpo de mulher, ao avançar, reparou num papel meio escrevinhado com tinta ainda fresca e o que pareciam ser algumas letras e um borrão. Teve a impressão de que o aroma vinha do borrão, não da mulher, ou seriam a mesma coisa? H…E…L……… Não resistiu e passou os dedos pela tinta, deixou a pele embeber-se nela. Arrebatado pela sensação de prazer, um arrepio quente percorreu-lhe a espinha, eriçou-lhe os cabelos. Inebriado, sentiu a pulsação precipitar-se, galopando, para depois se descontrolar. Palpitando agora com violência, fervendo dolorosamente nas veias, inflamava-lhe as têmporas e o pescoço. Perdendo o controle sobre o seu corpo pesado, caiu estrondosamente no chão.
Perante os seus olhos abertos, injectados de sangue e arregalados de asfixia e choque, pôde ver, suspensas, as letras formarem um nome—Helena—E, enquanto a visão pôde, uma cabeleira fulva, vagamente misturando-se com o breu até à noite total.