"Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer."
Alexandre Andrade, Razões para salvar Desdémona

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Apesar de comerem principalmente carniça

APESAR DE COMEREM PRINCIPALMENTE CARNIÇA
Leonardo Lacerda

O homem imaginou que devia haver restos do tempero das carnes do almoço em suas mãos, pois, ao pé do riacho em que iniciava a digestão, num movimento único, um disforme lagarto lhe abocanhou a mão direita e a ela ficou pendurado. Ele espirituosamente se questionou se estes seres eram carnívoros, enquanto observava assustado o tronco do bicho. Seria possível que se tratasse de um filhote de dragão-de-komodo, ou quem sabe de alguns daqueles répteis que vivem nas sujeiras dos canais que cruzam Bangkok, aqueles que surgem sob as bases das palafitas, entre as correntezas das águas cinzas, com extensas línguas bifurcadas que cumprimentam os turistas que por ali passam. Não é necessária agora a definição, mesmo porque dela não se desvincula a caracterização geográfica, aqui inútil, basta imaginar que, dali em diante, eram o homem e o lagarto uma coisa só, o menor dos dois sendo grande o suficiente para abocanhar a mão do maior, mas pequeno de forma que não se arrastava pelo chão.
O homem não admitiria, e eu não chegaria à ousadia de certas revelações, mas é possível que se tenha levado à beira do riacho para digerir um pouco mais do que apenas as carnes do almoço. Alguns diriam ser ideias da ordem das que se devem discutir num divã, relatar àquela pessoa:
— Estive pela última hora e meia agachado entre as pedras, gritando com as paredes do ar e com os tetos do riacho. “Estúpido! Estúpido! Estúpido!”, eu lhes dizia, em tom informal.
O profissional da mente bem poderia fazer observações clínicas relevantes, mas o homem, antes de todas as pretensões que já surgirão, é ainda só o que é, sendo, portanto, vetor da terrível mania nossa de ignorar a sensatez que nos é direcionada, ao passo em que sandices e insultos agarram-se à mente, quando não ao coração. Claro, isso se rodopiássemos o homem e o fizéssemos estar, concomitantemente, ali, cá, acolá, etc. Entretanto, por ora, na verdade, um pouco antes da chegada do lagarto, era só um ser humano patético gritando na natureza, desejando renunciar àquilo que entendia definir sua existência, enquanto estava, quem diria, existindo de fato, ou apenas digerindo as carnes do almoço.
Sabia que a volta a casa tomaria ares de confronto enfadonhos. Já era cansativo o suficiente arrastar-se por aí, da casa à mata, da mata ao riacho e de volta, isso quando era o próprio que vinha andando, pois, sendo a vez dos outros que ele insistia em criar, poderia ser do quarto ao balão, do balão à galeria, da galeria aos infernos de diferentes religiões, das religiões à morte, embora nenhuma dessas transições parecesse a ele mesmo digna de nota alheia. De toda forma, não apenas isso definia a problemática da volta a casa, era também a antecipação da conversa que teria ao esbarrar com ela, pela janela da cozinha para o jardim, conversa que provavelmente se confirmou:
— Olha o que me aconteceu — ele teria dito, expondo o óbvio.
— Tens um lagarto preso à mão — ela teria respondido, ainda a descascar cebolas, já a janta em mente, mal levantando os olhos, com a perna esquerda estendida e a direita sobre ela dobrada, formando um quatro.
— Pois bem. Não é assustador?
— Quem mandou te enfiares mata adentro?
— Que faço eu agora?
— Pensas que não sei o que lá fazes? — ela disse, com olhos menos agressivos do que piedosos.
— E que faço eu agora?
— Já experimentou dar-lhe umas porradas bem dadas?
— Tenho pena do bicho — ele disse, afastando a mão do corpo o máximo possível.
— Dá-lhe um tempo. Se pela mandíbula ele veio, pela mandíbula eventualmente se despede — ela preconizou.
O homem subiu as escadas cabisbaixo. Tudo era ultimamente um borrão, um fracasso desconexo, e isto ainda com ambas as mãos livres, cada tentativa de uma frase de impacto era uma visualização da própria limitação, cada esperança de um roubo bem executado se desfazia numa espécie de ventriloquia rouca, e agora o maldito candidatinho a crocodilo fincado em alguma camada da pele que soasse razoável o suficiente para que ele estivesse incomodado, mas não gritasse de dor em nossas orelhas, entalado quase até o punho. Fez a curva do topo da escada para o quarto, passando pela enorme estante de livros do corredor. Perguntou-se se o lagarto teria o desejo de buscar uma outra passagem, subitamente mergulhar em alguma referência, como quem para no posto de gasolina e exibe sinais de desconexão mental, perguntando, sem apontar: “É por aqui que vai para lá?”, ora, onde é que é aqui, e, ainda bem pior, qual é o lá a que se pretende chegar?
Sentou-se à mesa para tentar trabalhar. Não demorou muito para que, desde a cozinha, pudesse-se ouvir com clareza os seus gritos de repúdio, três vezes seguidas o termo estúpido, ou talvez fosse nojento, imbecil, qualquer coisa que povoasse a ojeriza que sentia. Ela rapidamente apareceu ao pé da porta do quarto para tentar acudi-lo:
— Vê só: como é que bato à máquina? — ele disse, aplicando pancadas cegas às letras com o corpo do lagarto, que ignorava o gesto.
— E por que é que tens com tanta certeza que escrever? — ela disse, aproximando-se dele e abraçando seu pescoço por trás. — Bem mereces um descanso.
— Como é? — ele perguntou, chacoalhando o bicho e afastando a mulher.
— Digo — ela respondeu, voltando à porta —,  é mesmo necessário que leves tudo ao papel? Não basta que as histórias existam em tua cabeça?
— O problema é que é outra coisa que em minha cabeça existe, outra coisa que não as histórias.
— E bem pensando: cuspir as palavras não é separar-se delas?
— De quem?
— Das palavras.
O homem estava mudo, dedicava ao réptil olhares curiosos. Começava a sentir certo envolvimento com o animal, quase como se considerasse lhe disponibilizar uns metros quadrados sem aluguel, depois que finalmente se separassem. A mulher prosseguia:
— E, por conseguinte, das histórias. E eu imaginaria que delas, palavras e histórias, tu não quisesses nenhuma separação. Pois são o que dizes ser tua razão de dormir e acordar.
— O problema — ele disse, como se explicasse algo óbvio a uma criança tenaz. — O problema é que o que existe em minha cabeça, repito, não é o que vem a existir no papel. Nunca é, nunca será, e não posso me satisfazer só com a primeira parte. É tão somente essa tentativa de equalização que dá sentido à escrita. Se tudo o que penso fosse tudo o que escrevo, não creio que seria feliz.
— E hoje és?
— O quê?
— Feliz.
— Não sei, mas ao menos escrevo. Ou escrevia — disse, oferecendo agora um olhar de lamento ao lagarto. — E o que escrevo difere do que penso. É nesse instante que me junto às palavras, finalmente. Recordo-me, então, de que talvez tenha havido mesmo um instante em que as avistei, quem sabe as tenha tentado engravatar, fazê-las todas num enorme matrimônio, dominá-las. Entretanto, creio que se neguem a tais esforços. E passam depois por mim como um vizinho de um prédio de quinze andares, com seis apartamentos por andar, passa pelo outro na rua.
— Não são tua posse, portanto?
— Assim nunca foi.
— E o que diabos é então que tens no quengo? — ela disse, impaciente, secando o suor da testa com um pano de prato.
— Ideias.
— Estas de nada valem?
— Paradas, são tão úteis quanto uma mão direita sob a posse de um lagarto. E se depender deste — disse, apontando com a canhota o réptil —, passarei meus dias a comer e dormir e a masturbar-me de mão trocada.
Ela deteve-se alguns segundos a refletir à porta. Virando-se de costas ao homem, proferiu, meio cortada pela sombra do corredor:
— Eventualmente, a fome dá cabo disso. Não te preocupes.
Ele aguardou o desaparecimento da imagem dela para responder apenas com um restinho de ar da inspiração anterior:
— Se não morro eu primeiro.
E se morro, deve ter pensado, não fica célebre frase alguma, nem para a lápide nem para eternidade do morto, até porque já se sabe bem que os grandes executam seus planos durante a existência, deixando ao leito de morte curtas e aparentemente inexpressivas falas. Não é de se chocar, o gênio diz em uma linha o que ao sonhador lhe custam quatro laudas, haja visto o esforço aqui em dar vida ao lagarto, este que não pode falar por si e a quem até agora não se chamou por sinônimos mais específicos como aipim, calango, teju ou teiú, tudo isso dependendo do fuso-horário de quem lê. Mas aqui mesmo me engano, não se trata de genialidade no puro sentido, posto que ela não existe sozinha, dir-se-ia mais ser algo como ourivesaria ou um desejo de morte constante.
Resignado, admirando os últimos detalhes do dia pela janela atrás da máquina, o homem sentiu o corpo mole e chegou a questionar se era sua a preguiça, ou se o lagarto é que sentia vontade de descansar. Reclinou a cadeira com os pés na mesa, bocejando feiamente, como costumamos fazer nós de mãos livres quando estamos sozinhos.
No meio do bocejo, deu-se pela sua imagem no espelho de madeira à direita, a poucos metros de si: quanto tempo levaria para que o lagarto finalmente decidisse lhe arrancar fora as carnes da mão, ou para que morresse de inanição? Riu da tola empreitada do bicho. O que quer que objetivasse, parecia deveras distante do ponto final, ali, inerte, agora de aparência inocente. Ele, por outro lado, haveria de encontrar saída: que escrevesse apenas com a esquerda, à máquina, à mão. Que aguardasse mesmo a morte do outro. Que ditasse para a companheira na sala ou na cozinha, embora não tivesse paciência para sua relutância à arte. Que saísse a gritar pela mata novos parágrafos, a ver se de fato aquela teoria das palavras como fração fundamental das repartições públicas da humanidade se manifestava, há quem diga que elas são como fiapos universais de imaginação, à espera de quem as alugue e encha os pulmões para dizer que tomará o mundo de assalto, a exemplo da vida que nos toma da barriga um dia. Então, alguém na Romênia captaria e traduziria aquele material e o levaria a público, apesar de que sempre haveria alguém para dizer que as ideias lá e cá sempre estiveram e a todos pertenceram, o que fez o romeno foi apenas despertar algumas. Azar do romeno ter de ouvir ofensas gratuitas, mas desejamos que estas sejam muitas, pois basta um único e primeiro leitor para reconhecer a distância entre o que o escritor é e o que pensa ser, portanto, enterrando pais e filhos, mas a fala vinda de múltiplos cantos deve significar que a obra anda a ser lida, ao menos vista, por aí. O homem, gritando pela mata, além desta primeira vantagem já citada, poderia criar, ler-se e reler-se em voz alta, já a testar o quão orgânicos eram seus diálogos e seus ritmos, se tivesse boa memória. Tudo isso torcendo para não esbarrar com outros lagartos, ou entendendo que justamente essa nudez fosse o repelente certeiro.
Sóbrio, ajeitou-se na cadeira, trazendo-a de volta à posição normal, o tronco ereto sentado ao limite do assento. Atento aos movimentos entregues pelo espelho, colocava-se o máximo de perfil possível para ainda enxergar seu reflexo de soslaio, a realizar cálculos matemáticos e previsões morais, a mão direita paralela ao solo e próxima à bochecha direita, as dimensões do lagarto, após um conto inteiro, finalmente se fazendo contábeis, algo como uma ou duas e mais um pouco cabeças de um cidadão de estatura média.
Olhando nos olhos do réptil, o homem enfiou a cabeça do lagarto na boca e aplicou-lhe os caninos na couraça. Tinha agora a boca tapada, o lagarto agitando o corpo como podia, dois rios de saliva ou sangue escorrendo pelos cantos do rosto. O gosto não era simpático, mas o homem poderia jurar que, jogado numa grelha, o animal possivelmente teria gosto de frango. Curioso que já o tenham dito também, embora a respeito de outra espécie, seres humanos que se viram canibais em cordilheiras abandonadas, tocadas apenas pelo descanso de cada um novo floco de neve.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

À procura de Helena

(depois da leitura de Razões para salvar Desdémona, de Alexandre Andrade)


Murilo preparou a cama, dispôs as almofadas de forma a não cansar o pescoço, uma seria para a nuca, outra para as costas e ainda uma terceira ao fundo do colchão, para levantar os pés. Das 648 páginas do livro já tinha lido 57.
Lia devagar, soletrando diálogos, voltando atrás para ver melhor, nunca se esquecia de letras ou linhas, deixava que cada imagem se instalasse debaixo dos olhos. Às vezes, até os fechava para ver melhor o que estava a ler. Murilo tinha levantado a persiana, deixado aberta a cortina. Gostava que os barulhos da rua entrassem no livro, o camião do lixo à noite, as vozes no passeio, os carros que pareciam rajadas de vento a abanar a casa.
Nos últimos meses, nada o fazia sentir-se tão vivo como ler. Nunca tinha experimentado antes. Foi conselho do médico no centro de saúde, por causa das insónias, dos pesadelos.
 Sr. Murilo, em vez de ver televisão, leia um livro. Vai ver que o sono vem.
Murilo experimentou. Gostou, os pesadelos abrandaram, mas o sono não vinha na mesma, ou vinha em passos lentos, como quem chega de longe e se atira para a cama vestido, cansado e confuso. Murilo metia-se pelas páginas adentro e, às vezes, só acordava já a madrugada ia alta, com a cara enfiada no meio das letras e a saliva a manchar as letras.
Hoje sentia-se, porém, tranquilo. Encostou-se às almofadas. Abriu o livro na página marcada, ajeitou as costas, amarfanhando as fronhas até ficarem com a forma do corpo, e começou a ler. Aquele era o maior livro em que alguma vez tinha pegado. Murilo queria ver se teria mãos, respiração, fôlego para tantas noites de leitura.
Em 57 páginas, já tinha conhecido Helena, o seu amante Aires e ainda o empregado do café onde as duas personagens iam todos os dias. Era engraçado, porque era muito parecido com o café onde o próprio Murilo ia. O narrador nunca disse como se chamava, mas Murilo via semelhanças em cada descrição.
Era pouco iluminado, tinha um balcão de madeira e umas cadeiras, forradas por um plástico amarelo, que giravam. O tecto tinha vitrais. Murilo não parava de pensar nestas coincidências. Hoje saberia mais, com certeza. Mergulharia um pouco mais nas páginas do livro.
Murilo leu naquela noite, leu na seguinte e na outra, e em várias noites que se seguiram. Mas, quanto mais lia, mais perguntas tinha. Havia buracos que o livro não preenchia, dúvidas que gostava de ver esclarecidas. As inquietações eram tantas que Murilo temia que as insónias voltassem.
Já sabia como era o café onde Helena e Aires iam, embora continuasse sem saber como se chamava – isso dissiparia as dúvidas sobre se seria, de facto, o mesmo que Murilo frequentava. Murilo esforçava-se como leitor, empenhava-se, já conseguia imaginar a rua, o bairro de Helena e de Aires. E, mais uma vez, conseguia ver a sua própria rua e o seu próprio bairro naquelas páginas.
Mas o narrador continuava a esconder-lhe muito, demasiado. Não sabia a que horas é que Helena acordava, não sabia o que fazia Helena todas as noites, pelo menos naquelas em que não estava com Aires, não sabia se lia, se via séries, se tomava banho de chuveiro ou de imersão, não sabia como era o pijama de Helena, o que comia ao almoço, não sabia como caminhava na rua, Murilo imaginava-a de cabeça baixa e apressada, mas o narrador nunca lho tinha dito directamente. Murilo sentia-se ansioso com estas ausências. Não gostava de silêncios. O silêncio nunca o deixou dormir bem.
Resolveu, então, deitar mãos à obra. Numa das noites compridas, encostado nas suas almofadas para a nuca e para as costas, decidiu que, durante o dia, iria procurar Helena e Aires pelas ruas. Helena, sobretudo Helena, era ela quem lhe interessava mais. Mas, talvez, se visse Aires no café ou na padaria, e o seguisse, conseguisse chegar a Helena. Afinal, o médico do centro de saúde também lhe tinha dito que andasse a pé, que deambulasse pela cidade durante o dia, que isso o ajudaria com as insónias e os pesadelos. Amanhã mesmo meter-se-ia a caminho. A cidade não era assim tão grande. Helena tinha de estar em algum sítio.
Nas manhãs que se seguiram, Murilo vagueou pelas ruas. Dobrou esquinas, apanhou o metro, estudou percursos de autocarro, entrou em lojas, em livrarias, pegou num livro de poesia, nunca tinha lido nada assim. Gostaria Helena de versos como aqueles? Sem dinheiro para comer em restaurantes, ficou-se pelas esplanadas, pelos cafés, pelos passeios, pelos degraus. Viu gente a passar, gente com pressa, gente sem pressa, gente com filhos pela mão, gente que mal consegue andar, gente com olheiras como as dele.
À noite lia, de manhã vagueava pelas ruas à procura das personagens que lia. À procura de uma, uma só. Murilo tinha de conhecê-la. Onde estará Helena? Onde estará neste preciso minuto em que Murilo pensa nela? O que estará a fazer? Murilo via-a em todo o lado, em todas as páginas do livro, em todas as imagens que lhe cresciam na cabeça, Murilo achava que a vislumbrava numa ruela, o coração parava-lhe de repente, mas logo voltava a respirar, sabia que eram as noites mal dormidas a alimentar visões.
Naquela manhã, Murilo entrou numa biblioteca, estava frio na rua. Tantos livros, tantas estantes. Podia passar os próximos anos a ler. O que diria o médico? E se lesse tanto ao ponto de nunca mais dormir? Murilo já não sabia como se sentia mais próximo de Helena, se quando a lia à noite, se quando pensava nela de manhã. A receita do médico, que parecia estar a funcionar no início, estava afinal a enlouquecê-lo ainda mais. Já não distinguia o que lia do que imaginava, o dia todo parecia uma noite mal dormida.
Foi naquela manhã de frio em que entrou na biblioteca que Murilo a viu. Era ela. Não havia dúvidas. O sobressalto de encontrá-la, de reconhecer a franja curta, o cabelo tão loiro que era quase branco, as mãos pequenas como as de uma criança, uma falha quase imperceptível entre os dentes. Helena tinha uma falha quase imperceptível entre os dentes e ele não sabia. Só agora que a via, em carne e osso, percebia. Os pormenores que um livro não conta.
Murilo seguiu-a, anotou o livro que escolheu para ler. Helena gostava de ler, Murilo também só agora sabia isso. Seguiu-a até à paragem de autocarro, decorou cada passo do caminho, o número da porta em que entrou, o andar em que ficava a janela que se iluminou. Não poderia abordá-la já, isso iria assustá-la. Teria de se explicar e Helena poderia nem saber que era uma personagem do livro que ele estava a ler. Precisava de ter calma.
Nessa noite, foi para casa a correr, tinha de ler o máximo que conseguisse à noite. Queria saber tudo sobre Helena. Leu sôfrego e, no dia seguinte, foi novamente sôfrego ver Helena sair de casa. Lia à noite e, de manhã, corria para vê-la. Chegava desarranjado, desalinhado, embrulhado em névoas e horas, mas sempre a tempo de a ver abrir a porta e sair solar e limpa para o dia. Murilo seguia-a até ao trabalho, fixava cada peça de roupa que usava, procurava nas traseiras do prédio o estendal de Helena. Não lhe queria fazer mal, só queria conhecê-la. Quem é Helena? Aquela que vê à noite, nas páginas do livro, ou a que persegue todo o dia?
Aires era insuportável. Era insuportável no livro e era insuportável quando chegava, dia sim, dia não, a casa de Helena. Era insuportável vê-lo tocar à campainha, vê-lo fechar a porta, imaginá-lo a subir as escadas, imaginar Helena a recebê-lo solar e limpa. Imaginar era insuportável. Murilo tinha de fazer algo novamente, antes que a história avançasse e acabasse, antes que Helena se visse irremediavelmente presa àquele homem. Era insuportável.
Nessa noite, Murilo foi para casa e leu o livro até ao fim, de um só fôlego, sem respirar, sem pensar, sem dormir, os olhos esbugalhados, as almofadas tortas, as dores no pescoço, os músculos contraídos pela tensão, a impotência perante o desenlace. Tudo era insuportável. As insónias feriam-lhe a cabeça e os olhos, agudas e negras. Murilo fechou o livro. Que fazer? Como ajudar Helena a livrar-se do que a esperava? Passou-lhe pela cabeça matar o autor da obra, mas isso de pouco serviria, a obra já estava escrita, o mal já estava feito. Mas Murilo tinha um plano.
Murilo tinha um plano e executou-o na perfeição. Foi tão perfeito que todos se interessaram por ele. Veio nas notícias de todo o mundo. Os jornais escreviam sobre Murilo, estavam intrigados ou fascinados com o que a polícia tinha encontrado em casa deste homem: dezenas de exemplares do mesmo livro, alguns rasgados, outros com páginas queimadas. Em poucos dias, Murilo Inácio, 57 anos, tinha encomendado a mesma obra em todas as livrarias e em todos os sites em que tropeçou, tinha-a requisitado em todas as bibliotecas. E tinha-lhes esfaqueado páginas e páginas.
Murilo Inácio, 57 anos, desempregado, que enfrentava dívidas e problemas judiciais, aparecia em todas as capas de jornais. Não tinha esfaqueado só páginas e personagens. Tinha esfaqueado também uma mulher que se chamava Helena Teodósio, que tinha acabado de chegar à cidade, e um homem, Aires Moniz, que estava com ela em casa nessa noite. Os contornos do crime são ainda pouco claros. O julgamento prossegue. O médico que receitou a Murilo Inácio leituras para tratar insónias é chamado hoje a depor.

Maria João Lopes

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Estranhos na noite


Depois de "Upturned Face", de Stephen Crane


Estranhos na noite


Como era hábito depois de jantar, preparei-me para sair de casa em busca de algo. Podia ser prazer ou medo, provavelmente ambos. Fingindo não querer nada com o mundo, deixei o apartamento de cabeça baixa, olhos na calçada, uma mão na algibeira da gabardina e outra sempre disponível para manusear o cigarro, que ardia a toda a velocidade nos lábios, fumado pelo vento vindo do rio. O percurso até ao bar fazia-se sempre a direito, e parecia sempre igual por culpa da escuridão. De tal modo que nas noites mais ligeiras demorava cerca de quinze minutos e nas conturbadas mais de uma hora.

Nessa noite, ecoavam pelo parque contíguo ao meu caminho os rugidos de crianças que corriam e exultavam com a sua pequena liberdade, figurada no bater do vento nas faces.

- Talvez sejam os amantes mais radicais da liberdade aqueles para quem, a dada altura, o desejo pelo vento seja substituído pelo da violência – fulminou-me.

A mão, que há pouco tinha dito repousar na algibeira, seguia, na verdade, apoiada no coldre da arma que por causa de pensamentos como este, trazia sempre comigo nos passeios noturnos. Sabia que Sartre tinha razão: o olhar está efectivamente no mundo; sentia-me continuamente vigiado, acreditava que a pacatez daquele local era enganadora e que se tratava de uma armadilha para me conseguirem apanhar desprevenido. Estava decidido a não deixar que tal acontecesse, portanto, saía sempre expectante e preparado para que, de repente, o cenário ruísse e os meus voyeurs fossem finalmente revelados. Para já, era mais uma noite igual a todas as outras. A luz dourava o pavimento, e o cheiro nojento do lixo amontoado junto ao caixote assinalava o meio do trajeto. Ao fundo, uma lindíssima miríade de insetos cintilava junto à fonte de luz que os entretinha.

- Precioso. - pensei – São milhares e estão reunidos naquele determinado sítio por um motivo comum: a luz que os faz dançar. E por dançarem tão rápido transformam-se em pequenos astros, capazes de ensaiarem uma pequena constelação diante do candeeiro. Pena é que a sorte raramente abone a favor de diminutos seres dançantes – concluí desiludido.

Sem me aperceber tinha alcançado o bar. Não tinha noção das horas, mas a julgar pela embriaguez dos demais, chegava tarde. Sentei-me ao balcão, pedi uma bebida e olhei de soslaio para a pista de dança onde, no meio de feições animalescas, se destacavam duas admiráveis figuras ondulantes, apenas reveladas pela luz intermitente, que surgia sincronizada com a batida. Jamais ousaria aproximar-me, pois vejo mal ao longe e não suportaria tamanha desilusão. Estava feliz assim e optei por preservar a imagem das duas musas desfocadas que a fantasia se incumbia de retocar. Esbocei um sorriso, peguei na gabardina, suguei o fundo do copo, e rodei sobre o banco em direcção à porta. Ao fazê-lo, o meu ombro esbarrou noutro, de um rapaz que contra mim praguejou. Antes de sair ainda espreitei; já dançava de mãos dadas com as musas.

Estava de volta a casa, mais uma vez, sem que nada tivesse acontecido. Corri o estore, deixando espaço para que o ar pudesse circular, e fui-me deitar, atordoado pelo silêncio.

Os olhos demoraram a abrir, tanto quanto demorei a perceber que os gritos vinham da rua e não de um sonho.

- Outra vez uma festa na mata – murmurei.

Imediatamente constatei que não era uma festa; distinguia duas vozes, ambas descontroladas, uma pela raiva, outra pelo medo. Nada mais. Vinham de longe e as palavras eram imperceptíveis mesmo depois de abrir a janela de par em par. Tentei espreitar, mas só vi duas sombras atrás de um carro parado. A figura A, enfurecida, gritava e gesticulava ferozmente, de pé, na direcção da porta do passageiro; a figura B estava sentada dentro do carro e cada vez que intervinha parecia ter a voz enrolada pelo choro. O estore, que dava acesso à varanda com vista para a mata, era velho e estava de tal modo enferrujado que chiava bastante quando era corrido, por isso hesitei em fazê-lo e permaneci encostado aos buracos a espreitar, não fosse eu precipitar o descalabro da situação. A discussão era cada vez mais acesa e opunha a ira de um, ao terror de outro. Petrificado, de telemóvel na mão, não sabia como agir.

- Pode estar prestes a ocorrer um crime; talvez seja uma discussão entre amigos, ou será antes um casal? A parece estar prestes a ceder às tentações mais sombrias, devo chamar a polícia; – solucei, atordoado - mas a polícia vai demorar uma eternidade, e assim que disser que são duas pessoas vão supor tratar-se de uma discussão conjugal, e por aqui ainda se julgam no direito de se absterem em situações desse tipo; mas sei lá eu se são um casal! Posso fazer barulho e afugentar A, para que B possa tentar fugir... Merda, serei rapidamente descoberto, ou até culpado pelo homicídio caso A se assuste e prima o gatilho. Condenar-me-ão moralmente pelo assassínio de B; se permanecer aqui, calado, nunca saberão da minha existência e desde que seja capaz de controlar a minha própria imaginação, a vida permanecerá igual e amanhã será dia novamente; merda, merda, que estou eu a pensar! Devo descer até ao local sorrateiramente, levo a minha arma e acredito como Jacques que tudo o que nos acontece estava já escrito lá em cima! Merda, merda, merda! Essa frase é de um romance e poderia tornar-me um assassino, vitimado pela má interpretação; podem estar a ensaiar fora de horas um texto dramático, Shakespeare ou Beckett, e eu, precipitado pelo medo, seria responsável pelo disparo que tiraria a vida de um ator, ou de uma atriz! Mesmo que não seja um ensaio, A pode estar à paisana, encenando um ato criminoso, para que B possa escapar impune e livre de perigo. Mais uma vez poderia ser eu o culpado pelo fracasso da delicada operação policial e involuntariamente sentenciaria dois pobres seres à morte! E quem sou eu para decidir quem merece ou não viver!? – soluçava, enquanto o vento e o suor frio me gelavam as faces.

A e B gritaram como nunca, a porta fechou-se num estrondo, a ignição ecoou, o acelerador foi pisado com violência, as rodas derraparam na terra húmida, o veículo saiu disparado, os meus joelhos cederam, larguei a caneta, caí na cama, a cara contra o colchão, e num instante perdi o rasto sonoro do carro em fuga.

- Bang!


Francisco Correia, 2019.

sábado, 12 de outubro de 2019

Cabeça - Inês Rôlo

Exercício a partir do tema «Padrão»


Cabeça

Foi então que disseram que o meu problema era na cabeça cabeça cabeça. Eu cá sentia-o algures entre a garganta estômago pernas, mas guardei essa opinião para mim. Os doutores garantiram, primeiro um, depois o outro, em seguida um terceiro, todos concordavam que sim, era na cabeça cabeça cabeça, eu ainda olhei vagamente a minha imagem no espelho onde garganta estômago pernas tinham o tipo de vibração do erro, mas eles, batas óculos narizes, acenaram com as suas cabeças cabeças cabeças na direcção das suas importantes anotações e não restaram dúvidas. Por causa do problema da cabeça, disseram, vou ter de ficar aqui uns tempos. É para o meu próprio bem, dizem. Não sei se sou eu que já não sei o que significam as palavras, ou se são eles que mentem, mas não acho que tenham razão.
É uma dor assim disse eu primeiro a um e depois a outro e em seguida a um terceiro, embora nem um, nem outro, nem um terceiro mo tivessem perguntado. Assim como um limão e fiz por espremer um limão entre as minhas mãos para que eles percebessem, primeiro um, depois outro e um terceiro, enfiei os dedos no limão limão limão até arder arder arder, mas o meu marido não gostou. Fez assim com a cabeça cabeça cabeça, deu um estalido com a língua língua língua e eu parei, envergonhada. Os médicos vão cuidar bem de ti, querida. Mas os seus olhos olhos olhos diziam outra coisa. Quando ficares melhor, vamos de férias. Mas as suas mãos mãos mãos diziam outra coisa.
Fui levada em rodas, lavada em lágrimas que me vieram assim sem mais. Despida, lavada, esfregada debaixo dos braços, esfregada entre as pernas, esfregada até a minha pele ficar esticada esticada esticada em todas as minhas extremidades. Fui vestida de um branco que cheirava a detergente de má qualidade e deitada numa cama branca com lençóis brancos e por cima uma colcha branca e abaixo o chão branco e mais acima o tecto branco e a toda a volta as paredes brancas. Fiquei assim por muitos dias e eles garantiram que me ia ajudar a limpar a cabeça cabeça cabeça. 
Eu quis acreditar neles. Deixei-me ficar branca de branco no branco, querendo muito que o problema fosse na cabeça cabeça cabeça e fosse fácil de resolver, evitando pensar na garganta estômago pernas e à medida que os dias passavam eu já só via tudo branco branco branco e esperava a absolvição.
Vieram os doutores, primeiro um, depois outro e um terceiro, como se sente hoje, como se sente hoje, como se sente hoje e eu muito bem, oh tão bem, cada vez melhor, e fizeram-me mais perguntas que eu não percebi e mostraram-me imagens que não eram brancas mas vermelhas e eu disse-lhes que não gostava de vermelho, que desde criança me causava aflição, que preferia ficar no meu quarto branco, mas eles queriam que eu visse, eu fechei os olhos, pensei que me ia dar uma coisa, eles disseram que o meu marido não ficaria satisfeito se eu não melhorasse e eu disse-lhes que estava bem se não me mostrassem aquelas coisas. Fizeram isto muitas vezes, primeiro um, depois o outro e ainda um terceiro, vermelho vermelho vermelho, e um dia combinaram os três e ali estavam juntos, trios de narizes óculos batas e todos acenaram com as cabeças cabeças cabeças. Atrás deles, estava o meu marido.
Falaram-me então da operação.
Primeiro um. Que não era um procedimento invasivo. Depois o outro. Que eu não ia sentir dor. E ainda um terceiro. Que ia recuperar rapidamente. Bastava a operação e eu ia ficar boa, nem me ia reconhecer. Ia poder voltar para casa e para o meu marido marido marido que sentia a minha falta falta falta.
O meu marido sorria. Tinha um sorriso de lábios vermelhos.
Não não não, disse eu. Eu não queria ser operada à cabeça cabeça cabeça. Até tinha dito ao meu marido e ele tinha prometido prometido prometido. Não tinhas?
Querida, tu queres ficar boa, não é? Esta operação vai fazer com que voltes ao que eras dantes, quando nos conhecemos. Não é por isso que estás aqui? Os doutores garantem que esta pequena intervenção te vai fazer ficar bem. Mas, claro, tu é que decides.
Disse aos doutores que tudo, podiam operar-me a tudo, mas à cabeça não não não. Com certeza haveria outras operações, eles tinham estudado muito, com certeza conheceriam alternativas. Eles sorriram. Primeiro um, depois outro e ainda o terceiro. Só o faremos com o seu consentimento, claro.
O meu marido sorria. Tinha um sorriso de lábios vermelhos.
Foi então que me tiraram do meu quarto branco branco branco. Descobri que havia mais como eu. Éramos todas mulheres. Ali não havia espelhos, mas compreendi que não eram necessários. Tudo o que eu poderia ver num espelho via nos rostos das outras outras outras. Não eram bem rostos, eram superfícies lunares, matizes de pálido. Algumas eram balões balões balões cheios de ar. Em todas elas eu via os meus olhos olhos olhos grandes vazios a olhar para mim mim mim.
Até te ter visto a ti.
A tua cabeça.
Ao contrário das outras, era negra rapada límpida, uma pedra preciosa polida.
Perguntei-me qual seria o teu problema porque não podia ser a cabeça. Tinhas uma cabeça perfeita como um ovo negro de galinha e se eu tivesse uma cabeça assim com certeza não estaria aqui. Olhaste para mim como se soubesses quem eu era, o que pensava, para onde ia — tudo coisas que eu desconhecia sobre mim — ergueste o queixo na minha direção.
E percebi, mesmo antes de dizeres, que o teu mal era a revolução.
E percebi, mesmo antes de me aperceber, que o meu mal eras tu.
Havia horas certas para a medicação. Aprendi contigo a fingir que tomava o comprimido. Havia horas certas para olhar para o vazio. Aprendi contigo a encher essas horas. Contaste-me sobre as outras. Disseste: Esta disse que não ao marido. Aquela disse que sim, mas não foi ao marido. E essa esqueceu-se de levantar a mesa. Esqueceu-se durante três meses. Era certo que limpava, arrumava, cozinhava e punha a mesa, servia o jantar. Mas, no final, não levantava a mesa. Já estás a ver o problema. E aquela conhece formas de evitar uma gravidez. Muito útil.
Falavas com palavras que eu conhecia e entendia, embora me fossem estranhas e todas novas, nunca usadas, nunca pensadas. Não te perguntei porque estavas ali, mas acho que sabia. Ao longo dos dias fomos aproximando as cadeiras, cada dia mais um bocadinho, cada dia mais perto e agora via a forma dos teus ombros como asas de corvo mesmo debaixo da túnica branca e agora via a linha do teu nariz a apontar para cima e para além e agora via os teus dedos como garras compridas e agora recuperava ideias que havia esquecido, por exemplo: qual é o sabor exacto da tua clavícula esquerda? E agora sentia tudo na garganta no estômago nas pernas. E tu viraste para mim os teus olhos de carvão, fogachos acesos.
Os nossos dias juntas foram os melhores da minha vida
Eram 9 da manhã, quando vieram os doutores para te levar. Um, depois outro e ainda um terceiro, juntaram esforços em teu redor. Agitaste as tuas asas de corvo, cravaste as tuas garras, lançaste um grito de morte. Todos se assustaram.  Tu ergueste a tua cabeça cabeça cabeça. O teu sorriso era negro e feroz. Em rodas, força e muitos braços, levaram-te. Eu vi tudo vermelho.
Já sabia que não serias tu, quando te voltasse a ver. Era a tua cabeça cabeça cabeça, mas não eras tu. Mesmo assim, contei-te sobre a garganta e o estômago e as pernas. Contei-te sobre o vermelho. Contei-te todas as coisas para as quais me tinhas dado palavras. Tu não me entendias. Passado muito tempo, quando eu já tinha perdido toda a esperança, falaste. Disseste na tua voz, muito séria, de um só fôlego:
Parietal temporal frontal occipital esfenóide maxila zigomático lacrimal nasal corneto inferior palatino vómer mandíbula?
Assim exactamente, com uma pequena inflexão para cima em tom de pergunta no final.
Os teus olhos eram aflitos. Esperavas a minha resposta, as minhas palavras que te salvariam. Peguei na tua mão.
Nesse mesmo dia, chamei os doutores e eles vieram, primeiro um, depois o outro e ainda o terceiro e disse-lhes que estava pronta. Eles ficaram muito contentes. Marcaram a operação para amanhã, às seis da tarde. 

Inês Rôlo, setembro 2019

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Exercício sobre construção e dissolução de um padrão a partir d’A escola’, de Donald Barthelme.


Durante o dia contávamos histórias. Eu achava que a maior parte era mentira. Um tipo muito magro, que quase não comia porque dois ou três tipos lhe roubavam a comida quase diariamente, disse que tinha ouvido dizer que havia ossos e partes de corpo humano espalhadas pelo jardim. Não explicou como tinha vindo a saber isto, nem ninguém lho perguntou. Que os ossos pertenciam aos jardineiros que o Diretor tinha contratado para o desenhar, muitos antes de obrigar os prisioneiros a cuidar dele. Nós ouvíamos com atenção. Os homens morrem envenenados por alguma flor ou assim?, perguntou outro homem, um que eu nunca tinha visto e que devia ter chegado à pouco tempo à prisão. O tipo magro não disse nada, nem ninguém se arriscou a dar uma resposta. Homens com medo inventam coisas para se entreter, pensei. Para justificar o seu medo e assim fugir-lhe, ou para construir um inimigo e assim justificar o seu medo. Eu não era diferente deles. Passava os dias e as noites com medo que me viessem buscar.
Os dias passavam como todos os dias em todas as prisões, e eu que o diga, que já estive em três. Mas as noites eram longuíssimas, as mais duras que alguma vez tinha vivido lá dentro. Era sempre de noite que nos vinham buscar. Três ou quatro guardas armados, às vezes mais. A princípio eu ficava acordado toda a noite, a olhar para o teto, atento a todos os minúsculos barulhos que os meus companheiros faziam. Se me viessem buscar eu não seria apanhado desprevenido. Eu julgava-me um tipo duro, claro, como todos os que estavam lá dentro. Mas ao fim de algum tempo percebemos que os guardas alternavam entre as várias alas, nunca repetiam uma duas vezes seguidas, e aprendi a relaxar.
Lembro-me de uma noite em que foram à Ala Este. Lembro-me porque levaram um tipo com quem eu tinha estado a falar durante o dia. Era um tipo duro, muito mais duro do que eu. Um tipo que eu apostava que iria sobreviver a tudo lá dentro. Durante o dia apareceu morto. Os guardas trouxeram-no do jardim por volta do meio-dia, como de costume. Já era hábito vermos os guardas a carregar um saco com um corpo de dentro do jardim. Víamos tudo através da rede de arame farpado. Por alguma razão, naquele dia, o saco do corpo estava aberto, talvez porque ele fosse demasiado grande para caber no saco. Consegui ver o seu rosto esverdeado, os seus lábios inchados, prestes a rebentar de tanto sangue.
O funeral foi logo nessa tarde, como era sempre. Nunca se esperava. Acho que o Diretor não gostava de enterrar dois tipos no mesmo dia, não era elegante. E o Diretor era um tipo que gostava de elegância, sempre bem vestido nos seus fatos muito bem passados a ferro. Como de costume, um grupo de guardas cantava músicas fúnebres, que aprendiam às quartas-feiras à tarde. Tinham um pequeno grupo, e aprendiam sobretudo música popular, daquela que dá na rádio, mas o Diretor tinha-lhes pedido que aprendessem músicas próprias para funerais. Eu acho que não tinha conseguido. Aprender músicas que poderiam vir a ser cantadas no meu próprio funeral, mais dia menos dia.
Nessa manhã devia ter havido problemas entre os prisioneiros e os guardas porque nenhum dos prisioneiros da Ala Este estava presente. Acho que nessa altura começava a haver algum desconforto com tantas mortes. A sensação, de resto partilhada entre todos os prisioneiros de todas as alas, que era tudo propositado, que não eram acidentes, como o Diretor nos fazia querer acreditar nos seus discursos.
Pelas contas de um dos prisioneiros da Ala Sul, com quem falei durante um jogo de futebol, acontecia o mesmo todos os dias há pelo menos uma centena de dias, embora nem todos os dias houvesse funerais, e nem todos os desaparecidos tivessem aparecido dentro de sacos. Ele não conseguia dizer quando tinha começado, nem porquê, até porque, como ele próprio me admitiu, tinha um problema com o álcool, mas alguma coisa não estava certa. Foi assim que ele disse, ‘alguma coisa não está certa’, mesmo para uma prisão aquilo não era normal. Eu tinha chegado há sessenta dias. Todos os dias fazia um risco na parede da minha cela com a unha do dedo indicador da mão esquerda. E também eu achava estranho que nesses sessenta dias tivesse havido tantas mortes.
No funeral, desse dia, o diretor falou mais do que de costume. O jardim é uma tentativa de paraíso, disse ele, não só contrasta com o que o rodeia, sendo belo e estando rodeado por coisas feias, como se eleva acima de tudo. Olhando para a prisão e os seus campos do Norte na altura certa do dia, continuou perante o silêncio de todos, guardas e prisioneiros, parece que se o jardim e as suas cores se elevam acima das torres largas da prisão. As suas grandes paixões eram a botânica e a geometria, disse, e tinha encontrado ali a fórmula secreta da sua felicidade, e tinha de nos agradecer a todos a nossa ajuda, a nossa compreensão, o nosso empenho. Dizia tudo isto com uma voz bonita, melodiosa, e mais bem vestido que nunca, num fato cinzento e com riscas azuis que lhe ficava impecavelmente.
Nessa noite ninguém conseguiu dormir, apesar de não ser a vez da nossa Ala, mas, segundo as nossas contas, a vez da Ala Sul. Ouvíamos com atenção todos os ruídos que nos chegavam. Se estivéssemos verdadeiramente silenciosos conseguíamos ouvir o que se passava nas outras Alas. Nesse estado de vigília acabei por adormecer, e tive um sonho do qual acordei estranhamente calmo. Um animal monstruoso, de formas nebulosas, lia de um livro uma série de histórias. Eu estava sentado aos seus pés, juntamente com animais que deviam ser a sua ninhada, pois agarravam-se ao ventre do monstro com a fome desesperada dos recém-nascidos. Com a sua voz de animal, que eu estranhamente percebia, falava-me do Quincux, que é composto usando os cantos de um quadrilateral regular e o ponto em que as suas diagonais se intersectam. O monstro explicava-me como esta estrutura está presente em todo o lado, em coisas vivas e em coisas mortas, nos animais do fundo do mar e nas vértebras dos mamíferos e nas espinhas dos pássaros e dos peixes, na pele de cobras africanas e nos corpos de larvas, borboletas e traças, mas sobretudo em plantas e flores. Plantas e flores que nasciam e cresciam no jardim, tão belas que qualquer homem que as olhasse morreria. Depois, a sua voz foi-se tornando distante, ou mais parecida com o balir de uma cabra ou com o rugido de um animal feroz, e então acordei.
Momentos após acordar os gritos começaram a ecoar por toda a Ala Norte, a nossa ala, e por todas as outras Alas. Mais um homem era arrastado da sua cela. Os seus gritos desesperados encontravam eco em todas as celas, mas nenhum prisioneiro podia impedir o que se passava. Pensei reconhecer, por entre os gritos frenéticos, o homem que tinha falado comigo nesse dia, e pensei se não estaria a chegar a minha vez.
No dia seguinte o dia decorreu lentamente, e o espírito de todos era especialmente lúgubre. Não falámos à hora de almoço nem se contaram histórias. No funeral, em vez de se enterrar um prisioneiro enterraram-se três, todos da Ala Sul. De entre eles, confirmei tristemente a presença do tipo com quem tinha falado, e pude ver com clareza o horror gravado no seu rosto. Colocaram os três corpos dentro de uma vala. Nessa altura já não devia haver sacos nem caixões. Enquanto o Diretor falava, aparentando tristeza e ressentimento perante a injustiça da vida, pensei em que segredos estariam guardados dentro daquele jardim, e se não estaríamos todos debaixo de algum feitiço, que nos impedia de ver a loucura daquela situação.
No dia seguinte, sem que tivesse havido gritos ou confusão, seis prisioneiros, todos homens jovens e acabados de chegar à prisão, todos da Ala Oeste, foram postos debaixo de terra. Depois começaram a morrer guardas. À hora do jantar os guardas que tinham ido ao jardim buscar os corpos dos prisioneiros também apareceram mortos. Fomos colocados mais cedo nas nossas celas. Ficámos sem jantar. O homem magro, que tinha contado as histórias sobre ossos e pedaços de corpos humanos, e que dormia na cela ao lado da minha, ria sem parar, não cheguei a perceber porquê.
Nessa noite, que seria a noite da minha ala, nenhum guarda nos veio buscar. No dia seguinte, um dia especialmente solarengo, enterrámos quatro homens, todos guardas.
A noite seguinte era provavelmente a nossa vez, e todos tínhamos a sensação que ninguém estava a salvo, tudo era possível. Os mais sádicos ou desesperados faziam apostas entre si para ver quem iria ser selecionado para a ida até ao jardim. Esperávamos o momento em que os guardas mais ferozes avançariam em direção às nossas celas com os bastões em punho e os dentes cerrados. Eu mantinha-me em silêncio. Confesso que estava aterrorizado. Já não me sentia um homem duro, e já não tinha a certeza que iria sobreviver. Tinha a sensação de que iria ser selecionado já nessa noite. Quando por fim os guardas se aproximaram das nossas celas, já os primeiros raios de sol deviam ter surgido no céu exterior, e eu e os meus companheiros estávamos exaustos de tanto especular, incapazes de nos debater, de resistir.
Os guardas aproximaram-se da minha cela. Chamaram o meu nome. Aproximei-me, incapaz de desobedecer. Os seus rostos estavam contraídos, os músculos dos seus pescoços ameaçam romper a pele, os seus olhares eram frenéticos e suados. Um deles agarrou-me pela camisa e puxou-me para si. O diretor não quer que ninguém conheça os caminhos do jardim, os segredos das suas bifurcações, disse-me. De cada lado do jardim, há seis árvores, disse outro, mas visto a uma certa distância, parece haver doze. Pareciam loucos. Eu esforçava-me por dizer que sim, por parecer dócil.
De quanto mais longe se olham mais clara é a visão, continuou um dos guardas, escondido na penumbra, e vê-se o menor dos detalhes com a maior claridade. No chão, começou outro guarda, com a voz pesada de um barítono, nenhuma pedra apresenta uma forma quadrada ou retangular. Ao invés, respeitam um padrão desenhado previamente, composto por pedras estreitas, primeiro, por pedras triangulares, depois, e por pedras de seis ou mais arestas, por fim.
Quase a ter um ataque, um quarto guarda disse: quando o sol incide sobre a extremidade Oeste do jardim pode contar-se exatamente vinte passos entre o seu centro, onde os corpos aparecem, e a sua extremidade. Esses vinte passos parecem trinta quando o sol brilha de Sul. Outras vezes, parece que o jardim não passa de uma imagem na extremidade do recinto, um desejo impossível de alcançar.
Uma voz dura e fria quebrou o discurso confuso dos guardas. Escolhe um prisioneiro, disse-me o chefe dos guardas, que tinha ficado silencioso até esse momento, e que parecia o único lúcido de entre eles. Escolhe um homem, precisamos que escolhas. Nesse momento fiquei paralisado. Não podia acreditar que a vida de um dos meus companheiros estava nas minhas mãos. Talvez pudesse entregar-me a mim mesmo, mas teria coragem para isso? Permaneci silencioso, baixei os olhos em direção à escuridão cinzenta do chão. Escolhe um, voltou a dizer o chefe dos guardas. Ou eu escolho por ti. A minha garganta secou. Pensei em apontar ao calhas, apontar para uma cela qualquer, pensei em apontar para mim mesmo, mas a minha mão permaneceu em baixo, sem força para se levantar. Os guardas sorriram, riram até, não sei se de sadismo se de desespero.
Perante o meu silêncio rapidamente se afastaram de mim e escolheram outra cela. Afastei-me das grades e embrulhei-me na manta. Da minha cama ouvi-os sussurrar longamente, falar com outros prisioneiros. Não sei o que disseram. Envolvi-me na minha manta e procurei esquecer tudo. Depois, começaram os gritos, um ou mais homens foram arrastados lá para fora, não sei, e tudo voltou a ficar silencioso. Não voltei a dormir, ou dormi profundamente, não sei.
A campa parecia a aura branca de um santo. O mármore tinha sido polido e lavado. De todos os lados resplandeciam flores coloridas e o verde dos seus caules era escuro e vivo, como se um rio subterrâneo alimentasse aquela pequena floresta em redor do caixão.
Nós, os prisioneiros, ficámos todos alinhados, entre o jardim e o buraco no chão, e o caixão desceu lentamente. Os guardas, que sempre ficavam a uma distância segura com as suas armas, desta vez avançaram e colocaram-se junto ao diretor, que largava as suas lágrimas habituais, e que eram parte do ritual. Nós, os prisioneiros, não sabíamos o que fazer. Eu estava contente por não ter sido a minha vez de morrer. Estava preparado para voltar para a cela, para recomeçar a lotaria de novo. Não sabia o que pensar da noite anterior, não sabia o que iria acontecer dali para a frente.
De repente, enquanto o diretor falava, um dos guardas, o capitão dos guardas que tinha falado comigo na noite anterior, pegou-lhe pelo pescoço. A voz do Diretor ficou mais fina, mais estridente. Por momentos ele continuou com o seu discurso, sobre a beleza do jardim e sobre a necessidade de fazer sacrifícios em nome da beleza. Mas depois, ao ser empurrado para a beira da campa, tentou voltar-se para trás e ordenar que o largassem, que ele era o diretor e que não era assim que as coisas se deviam desenrolar. Quando ele tentou levantar a mão para exigir obediência já era tarde, e já todos ouvíamos o barulho seco do seu corpo a embater contra o caixão no fundo do buraco. Os guardas começaram a atirar terra para dentro do buraco, e a voz estridente do diretor tornou-se um pouco mais grave, como se a sua boca tivesse ficado de repente cheia de terra, e momentos depois já todos atirávamos terra lá para dentro, guardas e prisioneiros. Quando o buraco ficou cheio, por fim, deixámos de ouvir os berros do Diretor. Nesse momento, o sol incidiu sobre as pequenas árvores na extremidade no jardim, e alguns de nós vimos que eram seis e outros viram que eram doze, e entrámos todos por ali adentro, em direção ao desconhecido.

A minhas Últimas Penas

8:30h Todos os dias me sabem um pouco ao mesmo, a bibliotecária chega, alimenta-me e fica cinco minutos a tentar que repita a frase “Bom d...